quarta-feira, 21 de maio de 2008

Um Romance de Hélder Rodrigues

Realmente as coisas surgem do nada e foi assim que Hugo viu pela primeira vez o seu destino. Corria desenfreadamente para o autocarro, mas naquele dia decidiu parar, não pela extrema vontade de regressar àquele local, mas porque de alguma forma sentiu algo de novo. Algo ter-lhe-á dito que não valia a pena correr, que seria melhor esperar pelo outro número que o conduziria ao seu propósito.

Sentou-se no banco daquele jardim que tão bem conhecia e contemplou a beleza que o envolvia e não eram aqueles olhos que acompanhavam o azul da sua vida. Vira algo bem mais resplandecente, capaz de mudar a força que o acompanhava nos momentos de pura evasão. Levantou-se e mergulhou naquele espaço que o chamara. Estava sem dúvida a viver uma nova experiência. Um encontro com o velho da sueca permitiu-lhe concluir que a sua vida trazia com ele muito mais do que a rotina infelizmente conformada.

- Então já ganhou para os tremoços?

- Não, rapaz. Ganhei dois amigos.

- Dois amigos?!

- Sim. O meu novo parceiro que me ajudou a ganhar e você.

- Eu?

- Sim, você! Até amanhã, sr…?

- Hugo. Chamo-me Hugo.

Aquela pequena conversa, insignificante à primeira vista, pareceu apoquentar Hugo, mas este não deixou de evidenciar a aproximação que tivera ante o velho da sueca como que pressagiando uma introspecção significativa.

Volveram-se minutos de ansiedade até ao reencontro. Hugo esperava voltar a ver aquele velho alto e macérrimo. De súbito, eis que uma voz profunda e cansada clamou:

- Então, rapaz! Hoje não se vai para casa?

- Hugo! Chamo-me Hugo. Vou esperar pelo próximo autocarro. O que passou não vinha cheio, mas este argumento é sempre verosímil e eu prefiro chegar um pouco mais tarde a casa.

- Não o devias fazer, rapaz. Nem imaginas a ansiedade que reside nos corações que esperam a tua chegada em cada dia!

- O que importa é que chegue e os meus pais já estão habituados.

- São hábitos de corações que sofrem aparentemente indiferentes, mas sofrem e nunca descansam. Acredita, meu rapaz!

- Hugo! O meu nome é Hugo. Tenho idade para ser seu neto. Esteja à vontade.

- Mas você não é o meu neto e o meu coração não bate por si, rapaz!

A frieza daquela resposta desiludiu-o, mas simultaneamente Hugo descobriu palavras sinceras e simples que o persuadiram a não ficar por ali. Ele via em cada sinal da sueca um sinal de destreza e de aprendizagem. Na verdade, Hugo queria ver até onde podia ir o seu mergulho.

- Bem jogado! Esse trunfo saiu mesmo a horas!

- É verdade, rapaz! Mas nem sempre é possível jogar bem, mesmo tendo o melhor baralho!

- Fica sempre mais fácil! Com os trunfos todos…

- Não é verdade! – interrompeu o velho. Por vezes, nem com trunfos vamos lá.

- Pensei que não, amigo. Pensava até que se ganhava com os olhos fechados.

- Nem com os olhos bem abertos tomamos as melhores opções.

- Anda lá, Zé! Toca a dar as cartas. – interrompeu o parceiro.

Hugo ficava encantado com o cariz lacónico e enigmático das frases que o velho dizia. Pelo menos descobrira, sem querer, que o seu amigo se chamava Zé. E Hugo não queria sair dali imbuído na ternura e no mistério que o atraía.

- Hoje já não jogo mais. Arranja outro parceiro, amigo! Queres jogar, rapaz?

- Não me parece! Também não me safava com a sueca, nem sequer as conheço!

- É verdade, rapaz! Nem quando conhecemos tudo, temos a certeza do nada.

- Como assim, Sr. Zé? Posso chamá-lo assim?

- Ó meu rapaz, a vida não é assim tão simples. Do tudo ao nada pouco dista, pois agora podes ser tudo para então seres nada.

- Mas tudo depende de nós. – respondeu Hugo visivelmente convencido.

- Nada depende de nós, Hugo! É assim, não é?

Hugo nem queria acreditar que aquele velho da sueca finalmente terá anunciado o seu nome. Sentiu ali uma certa aproximação de quem o mantivera tão aprioristicamente afastado.

- Ainda hoje voltei a escrever-lhe, Hugo! Não percebo a razão pela qual ela não corresponde às minhas missivas.

- Sr. Zé, ela poderá não estar certa de que seja você a escrever. Já pensou nisso?

- Ela bem sabe que sou eu. Temos um código. Assino sempre com o meu segundo nome, mas o tudo que já fui representa o nada para ela.

- E você fica aqui parado, sem nada fazer?

- E tu? Por que razão paras quando tens tudo para fazer?

- E que tenho eu para fazer, Sr. Zé?

- Procura-a por aí! És um jovem e tens tudo para me tirares do nada.

Hugo partiu desenfreadamente, sem saber bem para onde. Contudo queria ajudar o Pedro e levava uma carta para a M. Só não sabia bem onde entregá-la. Entretanto, lembrou-se que a carta tinha um destinatário e seguiu em frente. Colocou a epístola debaixo da porta e desencadeou a viagem.

A carta estava lacrada e só ela a poderia ler.

Porto, 12 de Setembro de 1952

Querida Mariana,

Já te escrevo há imensos dias e nada me dizes. Sabes bem que os tempos não estão fáceis, mas é na adversidade que o meu amor por ti se agiganta e, mesmo não tendo novas de ti, vivo com a alegria extrema de residir nesse teu coração e de fazer parte integrante da formosura do teu ser.

O que é que se passa contigo, Mariana? Foste sempre tão próxima de mim e agora afastaste-te tão abruptamente como se nada houvesse acontecido entre nós. Perdi o meu norte. Conforta-me a certeza de que vais ler estas palavras e que os minutos que perdes com essa leitura são momentos em que vais recordar as horas intermináveis da felicidade que juntos fomos capazes de viver.

Resta-me encontrar-te nos sonhos e ontem estavas linda, como sempre! Não compreendo porque choraste quando cheguei. Não demorei assim tanto, pois não amor? Hoje prometo-te que chego mais cedo, está bem?

Um beijo pleno de amor

Pedro

As lágrimas de Mariana tornavam imperceptíveis os vocábulos da pena escrita. A angústia e a frustração por não poder chamar aquele rapaz novo de roupa estranha era, para ela, um castigo de proporções imensuráveis.

Hugo já ia longe ainda meio perdido na imensidão do destino da sua missão. Reconfortava-lhe a ideia de que tinha feito o que o seu amigo lhe pedira. Angustiava-lhe a ideia de que voltaria a dizer o mesmo, que ninguém manifestara um sorriso que fosse, após a entrega daquelas palavras apaixonadas.

- Então, Hugo? Não a viste?

- Não, Sr. Zé! Foi a criada que atendeu. Virou-me as costas e nada me disse.

Por muita vontade que Hugo tinha em dizer-lhe algo diferente, nada parecia corresponder à ansiedade e à cega ilusão do seu amigo. Diminuído pela sensação de vazio, abatido pela fugacidade da felicidade plena e recolhido pela descontrolada mescla de sentimentos, Zé vivia num mundo paralelo em que rezava por Platão e confessava uma tristeza feliz ante a superioridade da razão da sua existência. Negara-se há já muito tempo às solicitações do mundo real, que lhe permitiam a futilidade de um entretenimento vão. As luzes incandescentes escureciam-se na sua determinação, na ilusão das viagens incríveis de um sonho que se queria bem real.

Mariana queria sonhar, mas a agrura da realidade não a deixava ser quem era de facto. Vivia numa enorme quinta bem no coração da cidade. A sua vida mascarava um grande bem-estar, aparentando uma estabilidade de uma bela jovem que, pela sua eloquência, via premiado o seu esforço em ser a melhor como se isso fosse a única razão da sua vivência. O seu nome no quadro não honrava a profunda melancolia que preenchia a alma e gerava uma miríade de gotas de pranto, prontas a explodir a qualquer instante.

Mariana escrevia sempre a Pedro e correspondia na mesma medida evidenciada pelo seu amor. Não queria acreditar que a miragem que se despoletou no seu imaginário, que aquele jovem de roupa invulgar era a ilusão do momento. Era a fonte que adestrava o coração e afrontava a razão e que constituía a esperança de que um dia tudo pudesse mudar, mas a força que contrariava a natureza de uma paixão parecia sobrepor-se impetuosamente.

Via Hugo a correr para a enorme portada e já sonhava com a magia das palavras de Pedro, com a força de cada letrinha que brilhava à luz dos seus olhos aspergidos pela impossibilidade da correspondência.

Pedro descrevia a beleza inacessível de Mariana e nada esgotava a sua platónica inspiração.

Porto, 27 de Fevereiro de 1953

Querida Mariana,

Sei que me queres falar. Ainda ontem me dizias que tens chorado muito e que só na sobriedade sólida do sonho encontras a ilusão de uma felicidade. Porém, pergunto-te porquê. Mas não precisas de responder, meu amor. Sei que um dia irei saber, não importa quando. Saberei esperar pela tua decisão. Saberei esperar por aquele dia em que, para além dos sonhos, tu quererás viver a realidade. Por ti, esperarei até à minha partida para nos encontrarmos algures e, juntos, vivermos a infinita prevalência do amor.

Até lá, estarei como sempre. Vivendo no meu canto, onde o teu encanto envolve cada partícula da minha existência.

Um beijo pleno de Amor

Pedro

Mariana pressentia a chama e a força das palavras e aguardava inquietamente pelo bater da porta do seu quarto.

- Menina, está aqui mais uma cartinha para si.

- Obrigada!

Decorria a leitura escorria a amargura. Permanecia o conflito entre as lágrimas de um coração doente e a certeza de uma razão irredutível. Mariana perdia-se no encanto do momento e saboreava repetidas vezes a imponência de cada palavra. Pedro recheava a sua alma de um plano superior e acalmava a profunda revolta evidenciada por Mariana.

Pela janela, mirava o rapaz de roupa invulgar e questionava-se se não estaria a ir longe demais a sua imaginação, se a alucinação preconizada pela força das palavras teria um poder lunático e a visão daquele jovem seria a evidência do seu descontrolo.

Contudo, Mariana estava decidida e voltava ao seu ritual, com a esperança que algo mudasse e com a certeza de que, pelo menos nos sonhos, tudo era possível.

Quando encerrava os olhos via Pedro. Um jovem alto, bem magro e de nívea tez, que corria feliz para os braços dela e a contemplava demoradamente. O azul dos seus olhos submergia-se nos caracóis de Mariana.

- Hoje estás triste, Mariana.

- Não, Pedro. Estava muito ansiosa por te ver aqui junto a mim. Mas peço-te que não demores.

- Sim, voltarei amanhã. Cá estarei para te ver.

Hugo não se conformava com a ambiguidade do momento, mas enlevava-se pelo estímulo como se o próximo baralho lhe fosse mais favorável.

- Não a viste, Hugo?

- Estava a chover e deixei a carta na caixa do correio.

- Não entendo. Ela nada me diz…

Visivelmente incomodado com a brutal mutação de estado de espírito do seu amigo, Hugo sentia uma vontade extrema de ajudar. Mas nada compreendia. O jogo não apresentava trunfos de maior e ele sentia-se inútil como a rotina de mais um final de dia, em que aguardaria por mais um autocarro rumo a casa.

- Vê se falas com ela, Hugo. – implorava Zé com uma voz periclitante e lacrimal.

- Eu bem tento chegar perto, mas nada me aproxima dela.

- É o tudo que tens para mim, Hugo?

Aquela pergunta antevia a perda da confiança arduamente conquistada ao seu amigo. Hugo pretendia a jogada de mestre, capaz de virar o rumo dos acontecimentos. Voltar à quinta e indagar para ter novas para o seu amigo era um dado adquirido e inquestionável.

Mariana vislumbrava Hugo no seu imaginário indiferente aos movimentos daquele rapaz de roupa estranha. Pensava na gravidade e na persistência das suas alucinações, da amplitude hiperbólica da sua fantasia.

No imenso jardim da quinta, Hugo aproximava-se de Mariana com a certeza de que tinha valido a pena subir àquele muro bem alto e esmurrar os joelhos. Finalmente, tinha o trunfo maior na ponta do dedo e alcançar Mariana seria uma questão de segundos.

De facto, Mariana passeava na imensidão do jardim e observava melancólica as mais ínfimas manifestações da natureza. Deambulava pensativa pelas roseiras e chorava, murmurando algo que Hugo não decifrara.

Caminhando ao seu encontro, Hugo descobrira que ela não o via de facto. O rapaz bem que gesticulou, mas Mariana passara por ele, simplesmente indiferente às coreografias histéricas de um jovem frustrado por ter perdido mais um jogo. Foi impressionante a indiferença da jovem Mariana, mas a verdade é que ambos viviam paralelos num mesmo espaço. Hugo seguiu cuidadosamente Mariana, convicto de que tinha perdido uma batalha, mas não a guerra. O verde dos olhos de Mariana esperançava o brilho dos de Hugo. Não queria voltar ao lugar, sem nada para dizer ao seu novo amigo. A porta fechou-se e a imaginação de Hugo abriu-se com a incorrecta, mas justa tentação em criar um novo cenário e desencadear uma bela razão para o seu amigo sonhar.

- Ela disse-me que tem adorado as suas cartas e mandou perguntar quando é que voltava escrever-lhe.

- É linda, não é?

- Sem dúvida. Quando quiser, volto lá!

Mariana estranhava a inexistência da desejada missiva. Não compreendia o facto de que, após ter visto o jovem da roupa estranha, nada estivesse debaixo da porta. Mesmo assim, e antes do desejado sonho, Mariana voltou ao seu ritual. Deitou as velhas cartas na mesa, mas estas diziam-lhe o mesmo de sempre e a angústia, a frustração, a dor e o sofrimento apoderavam-se daquele corpo frágil que se precipitava para os lençóis, aguardando pela única razão do seu viver. Esperava o seu amor na volta do devaneio e aí vivia a vida que sempre ambicionou.

Pedro encontrara-a mais fria e distante. Não compreendia a aparente indiferença de Mariana, mas a platónica razão dir-lhe-ia que ele deveria fazer algo para se aproximar do inatingível. E a sua alma reconfortava-se pela imensa magia que o seu amor por Mariana despoletava no seu corpo.

Todavia, esse sonho fora diferente. Mariana denotava um afastamento invulgar e impróprio para a verdadeira essência daqueles fugazes momentos de rara beleza e magia.

Pedro sentia-se tentado a questioná-la, mas isso seria uma afronta aos princípios delineados por Platão e contemplava-a de longe, visivelmente incomodado com as lágrimas de Mariana que passavam a ser as dele.

No entanto, Mariana aproximou-se um pouco mais e lacrimejando disse:

- Meu querido Pedro, peço-te para não voltares tão cedo. Tenho que centrar a minha vida num facto que incompatibiliza a tua presença.

- Nem nos sonhos, Mariana?

- Nem nos sonhos, Pedro! Aliás, como bem sabes, os sonhos condicionam a minha realidade e eu não estou bem. Acredita que não era este o destino que pretendia para as nossas almas. Mas a angústia de te querer e não te ter agudiza-se em cada minuto, em cada letra das tuas belas cartas em cada gesto do teu olhar inatingível e impossível.

- Impossível?! Nada é impossível, meu amor. Podes constatá-lo na partilha dos nossos sonhos. Somos capazes de viajar, quer no tempo, quer no espaço…

- Mas eu peço-te que regresses para o teu canto. Um dia chamar-te-ei para um sonho e aí sim, aí hei-de estar preparada para ser a tua mulher, sem que nada de mal te aconteça.

- O que é que poderá acontecer, amor? Tudo já aconteceu e não quero perder a ternura da eternidade.

- Mesmo a eternidade tem as suas pausas. Precisamos de uma pausa, Pedro. Uma pausa que eternize as minhas convicções, que determine a essência da longevidade do nosso amor. Não quero que este seja interrompido e se afogue num profundo vazio.

- Voltarei para o meu banquinho, no jardim, e esperarei por ti, Mariana. Estarei sempre à tua espera. Nada nem ninguém me fará desistir.

Mariana acordara com a palavra que a perseguia. Desistir era o vocábulo mais presente na mente da jovem. Por muito que quisesse contrariar a sua presença esta concluía as frases dos seus pensamentos. Ver o rapaz de roupa estranha que insistia em aparecer era um alívio para ela. Um momento que não sabia explicar, mas que de alguma forma a dissuadia de profundos pessimismos.

Cruzavam-se inúmeras vezes. No entanto, não havia consentaneidade entre aquelas duas almas. O rapaz de roupa estranha manifestava um ar de preocupada ansiedade. Mariana bem tentava encontrar uma razão para a presença daquele jovem. Procurava a aproximação nas cartas, mas este não surgia no baralho e tudo estava baralhado para Mariana. Pedro aparecia nas cartas, mas sempre da forma mais inconveniente e indesejável para Mariana.

Era aliás nessa altura que o seu mundo se desmoronava e a carta persistia, protelando todos os seus sentimentos mais genuínos.

No jardim, o Sr. Zé insistia:

- Ó rapaz, não viste o autocarro? Então e agora?

- Agora, espera-se pelo outro. À quarta-feira posso estar mais descansado. Vá lá, não se preocupe comigo.

- Tu é que sabes, Hugo! Vou bater umas cartas aqui com o pessoal. Estou a precisar de me distrair.

Aquele olhar de Zé, de nostalgia evidente, entristecera o olhar de todos os velhos do jardim, que se reconheceram na mágoa do desabafo.

- Ó amigo, connosco não aprende nada! Aposto que está cheio de namoradas por aí. Para que perde tempo aqui?

- Não estou a perder tempo, senhor. Estou a aprender a jogar às cartas.

- Aqui o Zé é raposa velha, mas por vezes parece que não está aqui e joga a pior carta, deitando tudo a perder.

- Também aprendemos com os erros, não é Hugo? – interveio o Sr. Zé com ar de quem não estava a gostar da conversa.

- Sem dúvida, Sr. Zé.

Hugo sentou-se na roda dos amigos e observou atentamente cada gesto, caindo hipnoticamente na evasão sugerida pelos naipes que anteviam mais uma viagem. Levava uma carta e corria para a quinta.

Porto, 8 de Novembro de 1953

Mesmo que não te veja no paraíso do sonho

Ando na rua e observo com os teus olhos

Ris e choras num ritmo medonho

Impressionas com um olhar cortado em folhos

A força que me move não se esgota

Não se perde na tua beleza, nem se encontra

Apenas sonho e nada me amedronta.

Há alguém que nos quer ajudar

Um rapaz novo e lutador

Guia o nosso olhar e

Olha pelo nosso Amor.

Um beijo pleno de Amor

Pedro

Contrariando a própria razão, Mariana aguardava ansiosamente pelas palavras de Pedro. O rapaz fugira do olhar da sua imaginação e ela podia então saber novas do seu amigo.

A poesia sensibilizava-a particularmente e sabia que, quando Pedro a escrevia, havia uma razão especial. Quando derivava por este género, Pedro sofria. Pedro clamava emocionado pela sua felicidade. Bastava ver a estrutura do texto e Mariana pressentia a lágrima que fora semeada e que germinaria após a leitura.

Ficou então a saber que o rapaz de roupa desadequada não surgia por acaso. Tinha uma missão específica, que era pugnar pelos sonhos e pela sobrevivência daquele amor. Descobrira agora o seu nome.

- Hugo, o rapaz chama-se Hugo!

Esperançada pela revelação, Mariana repetira o ritual naquele dia, mas a carta indesejada plasmava-se e já não ansiava o sonho para que o pesadelo não surgisse.

A frustração mantinha-se. O receio da perda e do afastamento definitivo de Pedro reconduzia Mariana para o marasmo do vazio. Queria as forças para continuar a lutar como lutara nos anos do pós-guerra. Foram tempos difíceis em que Mariana se tornou voluntária, correndo em auxílio dos famintos e abdicando dos prazeres da luxúria que a envolvia. Ajudou o destino de muita gente e o destino não a queria ajudar.

Procurava Hugo nos imensos jardins da sua quinta, mas este não aparecia ante os seus olhos verdejantes, que alimentavam a réstia da esperança que se lhe fugia pelas mãos. O azul do céu era a tristeza e a recordação dos olhos de Pedro que receava nunca mais ver, para assim salvaguardar a eterna vitalidade da alma do seu amor.

- Bem jogado, Sr. Zé! Como quem não quer a coisa, revelou tudo ao seu parceiro com essa carta.

- Ele já sabia que eu ia jogá-la. Mas o jogo não está nada fácil!

- A sueca foi inventada por quatro mudos. Não se importam? – protestou a ganância do adversário.

- Peço desculpa, amigo!

Hugo via-se novamente à porta da quinta que tão bem conhecia. Entrou e sentou-se no banco que o chamara. Observou tudo aquilo que o envolvia e a flora imensa acalmava a incompreendida ansiedade do momento. As árvores daquela tarde amena de Novembro agitavam-se harmoniosamente. Cada movimento anunciava a despedida de uma folha bela que se desintegrava do ramo e caía lentamente, embalada pela brisa que assobiava para a Hugo. Quem o chamava?

Via Mariana cabisbaixa e introspectiva, mas nada poderia fazer. O silêncio ensurdecedor incomodava-o, empertigava-o. A sua impotência em comunicar com a razão da sua presença bloqueava o seu pensamento. A barreira temporal era uma realidade e nada se conjugava.

Contudo, Hugo estava ansioso e não sabia a razão de tal ansiedade. Mesmo assim, acompanhou os passos de Mariana e viu-se sentado ao lado dela, na escrivaninha do quarto.

Ela lia todas as cartas de Pedro. Suspirava em todos os pontos finais e chorava com aquele acróstico recente, no qual a poesia suscitara a simbiose apaixonada consubstanciada pelo autor e superiormente acolhida pelo leitor. Os olhos de Hugo não queriam acreditar que o seu nome fazia parte daquela missiva e sentiu que tinha algo a dizer.

Bem gesticulou o rapaz, mas nem a parede que o separava do exterior lhe fazia frente. Ficou mais um pouco e viu Mariana colocar um baralho em cima da sua cama. Sentia uma grande esperança por parte dela, enquanto esta se preparava para dispor aquelas cartas. Cedo percebeu que Mariana não ficara contente com o resultado da disposição apresentada pelos diferentes naipes.

Saiu do espaço alheio e regressou ao jardim. Importunara-lhe aquele ritual de Mariana.

- Um para nós!!! Já demos a volta! – anunciou o Sr. Zé com ar triunfante.

- Isto das cartas tem muito que se lhe diga, Sr. Zé!

- Bem, agora é que vão ser elas. Vamos à negra!

- Negra?! Que é isso.

- É o tudo ou nada numa partida de sueca.

- Vê-se mesmo que não gosta de perder, Sr. Zé.

- Já não tenho a ganhar nesta vida. – respondeu o velho interrompido por um aviso de sms.

- São os meus colegas a convidar-me para uma futebolada.

- Vai lá rapaz! Já não se aprende nada aqui!

- Tenho tempo de ir lá ter. O pavilhão é já ali.

- Ora então, vamos à negra!

- É a final que não quero perder, nem por nada. Eles que esperem!

O jogo não estava fácil. Aquele baralho de Mariana desordenava as ideias de Hugo. Algo estaria por trás daquela reacção de profunda desilusão evidenciada por Mariana. Aquele banquinho do jardim foi a base de uma profunda reflexão por parte de Hugo, que juntava as hipóteses consciente das deambulações de que era vítima.

De uma coisa tinha ele a certeza. O facto do nome dele aparecer na carta de Mariana pressupunha o inevitável envolvimento da sua pessoa nesta história. Arrepiava-se todo, quando procurava arranjar uma explicação plausível para o facto de Pedro conhecê-lo, incumbindo-o da árdua missão de olhar pelo amor de ambos.

Pedro precisava de acalmar o forte bater do seu coração, tomar consciência daquilo que lhe estava a acontecer e saber se o seu novo amigo estaria a par ou não da situação. Seria o Pedro ou o Zé que sabia da sua envolvência na história? Pensava até se nenhum deles estaria a par. Sabia, no entanto, que a causa dos desencontros com a Mariana era simples. Não fazia parte daquele enredo. Era uma carta fora do baralho.

Mesmo assim, sabia que algo estaria a depender da sua intervenção e procurou novamente Mariana. Viu-a bem de perto e constatou a veracidade do adjectivo linda, que o Sr. Zé empregara. A formosura dos seus caracóis balanceava a leveza de uma silhueta assaz definida.

Foi ao relembrar o adjectivo enunciado pelo Sr. Zé, que Hugo tomou consciência de que aquele velho que conhecera no jardim estaria a par das atribulações do seu novo amigo.

Hugo seguia minuciosamente as acções de Mariana, acompanhando-a em casa, na escola e nas acções de voluntariado.

Encontrara-a muitas vezes perdida no meio de muita gente, evidenciando uma desorientação assustadora e triste. Hugo nada podia fazer para atenuar a dor, para mudar o rumo das coisas. Aliás, pensava mesmo que o rumo das coisas já estava estabelecido há muitos anos e que a sua presença não se enquadrava definitivamente naquela rotina. E que triste a rotina de Mariana!

- Vá lá, tenha paciência! O pior já passou. A guerra já lá vai e o pão não escasseia na sua mesa.

- Isso pensa você, menina! Não sabe o que eu passei. Éramos seis irmãos e a sardinha repartia-se até à última espinha. Ainda me está a saber bem aquela que partilhei só com o meu irmão, porque levei aquele carrego de estrume para o caseiro. Uma sardinha era um pitéu naqueles tempos e um dia de trabalho, de sol a sol, valia mesmo a pena. À noite, os olhos faziam o favor de se fecharem, mesmo antes sequer de nós pensarmos em dormir. O cansaço tratava de nós e o novo dia surgia sem querer, com o querer de um dia sermos alguém na vida…

- São tempos passados, senhor. Vamos olhar para frente.

- Mas o que está atrás é muito forte e condiciona o que aí vem na frente. Não mais esquecerei a injustiça de os senhores das terras que ignoravam os calos e esbanjavam como senhores vassalos. Ainda me irrita a subserviência do nosso povo que, apesar de tudo, sorria, mas sorria com genuinidade. O povo cantava alegremente e espantava todos os males que a exígua gente grande perpetrava. As mãos marcavam milimetricamente o compasso da lua que já ia alta e que era cantada com um prazer legítimo. Pelo menos isso os senhores não nos roubavam. A simplicidade das coisas, a grandiosidade da natureza que oferecia gentilmente o produto de tantas gotas de suor sobrepunha-se ao tempo e aos momentos em que a infelicidade parecia querer marcar a sua indesejada presença. É muito bonito, quando uns olhos nos contemplam sorridentes sem mácula, esperando dos outros olhos um outro sorriso e nada mais…

Mariana emocionava-se com tais palavras e não escondia algum desconforto em saber que, na verdade, pertencia ao outro lado da barricada.

No entanto, procurava não dar a entender essa condição social e ajudava com um coração enorme aquelas almas traumatizadas pela hecatombe da guerra. Conversava muito com aquelas pessoas e o seu sorriso cativava-as como este fosse a catarse de todas as más recordações.

- Você é muito bonita, sabia?

- Obrigada. – respondeu Mariana visivelmente envergonhada.

- Não lhe devem faltar pretendentes. Com esses caracóis arrasa corações, menina!

- O meu coração é que foi arrasado…

- Não me acredito. Como poderá alguém olvidá-la?

- Nem esse alguém compreende o que se passa, tão pouco sonha com a verdadeira razão do meu desgosto.

- E qual é essa razão, menina? Qual a razão de tanta tristeza?

- Eu própria não a entendo, mas sei que esta existe e nada poderá evitar a sua presença na minha alma.

- E será assim tão forte a razão para se sobrepor ao encanto poderoso do coração?

- É esse encanto do coração que me impede quaisquer tentações, porque a razão me demove implacavelmente.

- Faça sempre aquilo que o coração manda, menina. Se não fizer perderá esse sorriso lindo para sempre. Assim perdi o meu.

- E como foi isso, Sr…?

- Hugo. Chamo-me Hugo.

- Hugo?

- Sim, não gosta do nome?

- Não, não. É um nome bem bonito. Mas como perdeu esse sorriso?

- É uma longa história e entristeço-me profundamente só de pensar nela.

- Não precisa de ma contar, Sr. Hugo. Não quero vê-lo triste.

- Nunca a partilhei com ninguém e o meu coração cede muito, quando chego à conclusão que errei.

- Vá, Sr. Hugo! Deixe lá. Mudemos de assunto, sim?

- Não, menina! Volvidos tantos anos, sinto que tenho de exteriorizar toda a dor que me acompanha.

Mariana estava impressionada com o brilho dos olhos daquele senhor. Acreditava que a sua presença iria ajudá-lo naquele momento de maior melancolia.

- Sabe, menina? Fui sempre um jovem trabalhador e não virava a cara a nada. Gostava sempre de chegar à noitinha, depois de todos os meus irmãos. Era um vício.

- E a sua mãe?

- A senhora minha mãe já estava habituada. O seu coração já estava habituado a esperar pelo barulhinho que o velho cancelo de madeira fazia. Sabia que o seu Hugo era assim. Tinha aquele vício.

- Mas o coração dela estava ansioso pela sua chegada. As mães são todas assim.

- Bem sei, mas não era um defeito…

- Era feitio, Sr. Hugo! – completou sorridente a Mariana.

- Mas para além de todo o meu trabalho, havia alguém que me cativava solenemente, alguém que estava acima de qualquer coisa. Era a menina dos meus olhos. A razão de todo o meu viver. Amei, amo e amarei sempre cada manifestação de vida naquela mulher.

- Os seus olhos ainda brilham quando fala dela!

- Sim, a Cristina era tudo para mim. Construí a minha vida em torno daquele anjo, com quem pude voar por longas horas que corriam na ponta dos meus dedos. Respirava para a ver feliz e sonhava com aqueles dias em que despertaria, contemplando-a no mais profundo encanto.

- Mas o que aconteceu, Sr. Hugo?

- Aconteceu tudo aquilo que não queria. Um enorme enredo de grandes desentendidos, em que ambos fomos vítimas inconscientes da consciência nefasta de outros.

- Alguém vos quis mal? – perguntou Mariana, bem perturbada.

- Ninguém quis o que ambos quisemos. Ninguém compreendeu a simplicidade de uma expectativa, que se gorou inexplicavelmente. Nem eu mesmo entendo o que se terá sucedido. Sei que tudo andava bem e Cristina iluminava a minha vida com a grandiosidade dos seus olhos. Escrevia-lhe poesia e ela sorria para mim, cerrando os olhos sempre que me ouvia declamá-los:

Na certeza do que é certo

encontrei a luz no teu ser

Agora estás perto

Bem perto do meu querer

E como eu te quero aqui

Junto à minha alegria e

Longe do que já vivi

a vida sempre sorri

ao saber o que não sabia

Na certeza do que é certo

acertei com o que me destina

e cheguei a tempo, bem certo

de que és tu, CRISTINA!

A rara beleza das palavras do Sr. Hugo despoletava na Mariana a recordação das cartas de Pedro. A saudade do encontro, a vontade de sonhar lacrimejava a sua alma. Não parecia querer acompanhar aquela conversa que acicatava recordações e inquietava a aparente frieza da sua pessoa.

Porém, ela reagia.

- Mas diga, Sr. Hugo. Desabafe lá com a sua amiga.

- E a menina vai querer ouvir?

- É claro que sim. Quem não gosta de falar das coisas do coração?

- Nem sempre o coração gosta de falar de nós.

- Mas por vezes partilhar os nossos sentimentos ajuda-nos a viver.

- E será isso viver? Será a única solução para explicar o porquê das coisas? Como eu gostaria de poder chorar de alegria e partilhá-la com todos.

- Ser feliz é difícil, não é?

- Ser feliz é fácil, mas não dificultar a felicidade é difícil!

- Você dificultou a felicidade, não foi?

- Nem eu próprio sei, menina. Envolvi-me na confusão daquilo que é simples. Um dia, regressava do campo e esperei-a na nascente mais bela em que água cristalina certificava a pureza do nosso amor. Porém, Cristina não apareceu. Pensei que tal ausência tivesse a ver com a fria tarde que se pôs e que no dia seguinte voltaria a encontrar os olhos da minha alma. Volvida a hora do encontro, procurei a sua presença e nada encontrei. Via apenas algo inexplicavelmente diferente, onde a água corrente gelava com tamanha apatia da minha parte. Perguntava-me sobre o que teria eu dito para não encontrar a sua graça e procurava uma explicação plausível e racional para confirmar a sua ausência. Não era minha intenção reclamar a sua explicação para o seu súbito desinteresse e escrevi-lhe:

Meu Amor, a tua ausência perturba-me e desconheço de todo a razão pela qual nada dizes. Quero que saibas que, mesmo assim, não deixarei de voar contigo. A tua existência conforta-me e lutarei pelo teu sorriso.

- Que terá acontecido com ela, Sr. Hugo?

- Espere, Mariana. Tudo saberá, se me quiser ouvir.

- Claro que sim! – respondeu inquietada.

- Sabia dela todos os dias. Via-a triste e perdida na miríade de confusões. Os seus belos olhos procuravam-me nos momentos em que parecia abstraído da sua presença. Apenas não compreendia o seu afastamento. De qualquer modo, o seu afastamento aproximava-nos na certeza e na ânsia do reencontro. Agora o encanto residia no facto de se saber quando é que as asas se uniam num voo concreto e mutuamente desejado. Voltava todos os dias à Fonte dos Baralhos. Era um nome estranho, mas tinha uma explicação. Diz-se que um dia estavam quatro velhos a jogar às cartas naquele local e, no final de cada sessão, todos se levantaram para se lavarem na água do tanque. Na água, reviram-se bem mais novos e encantaram-se com tal magia. No entanto, nesta beleza sobrenatural havia um senão. Quando uma carta caía, tudo se baralhava e ninguém mais a encontrava. Vazavam o tanque, mas aquele pedacinho de papel nunca mais voltava. Por receio àquele acontecimento bizarro, os velhos não voltaram à fonte, nem jogaram mais às cartas. Diziam que quem perdia a carta na Fonte dos Baralhos, perdia o rumo da vida e nada mais seria recuperável. Comparava eu muitas vezes a perda da carta do baralho ao desencontro com o amor da minha vida. No entanto, fazia questão de regressar à fonte e manter a minha presença, imaginando a presença de Cristina. Dava comigo em extensos solilóquios, nos quais imaginava as suas belas palavras: “Então, meu Amor! Desculpa ter chegado um pouco tarde. Já sabes que tenho esta tendência. Não, não faz mal. Sei que me compreendes. Tens razão, Cristina. Este sítio é único no mundo, mas a raridade da tua beleza minimiza o encanto da fonte. Sim, Amor! Nunca mais jogarei às cartas aqui, nem quero perder o rumo da minha vida que construo dia a dia à tua volta. Quero prometer a terra a quem me dá o céu”. Contudo, mesmo não tendo perdido carta de nenhum baralho já havia perdido esse rumo há muito tempo. Começava a viver iludido pela convicção do meu sentimento e guiava a minha vida em função de hipotéticas razões…

- Sentia-se triste por viver nessa ilusão, não era?

- A ilusão tratava de me manter feliz nos momentos de maior vazio. A minha alma preenchia-se com a esperança de um dia compreender aquele olhar triste que me procurava durante a missa. Eu também ia rezar para ver aquele olhar. Foi num dos devaneios na Fonte dos Baralhos que encontrei uma carta…

- A do baralho?

- Não, Mariana. Não foi a do baralho, mas baralhou ainda mais a minha alma. Não sabia como nem quando é que ela tinha deixado aquele papel, mesmo ao lado daquela fonte de imaginação.

6 de Novembro de 1941

Querido Hugo,

Bem vês o meu sofrimento. Queria que nada disto estivesse a acontecer entre nós, mas quis o destino que não pudéssemos viver lado a lado. Não me perguntes porquê, pois não te irei responder. Apenas quero dizer-te que te amo, mesmo estando baralhada com tudo.

Um beijo pleno de Amor

Cristina

O teor da carta deixou-me ainda mais inconformado e buscava todos os dias uma nova missiva naquela fonte.

- O Sr. Hugo não a encontrava nos seus sonhos? É tão bom sonhar!

- Sonhar com o quê e para quê?

- Sonhando, vivemos duas vezes e, por vezes, vivemos em vez da crua nudez da realidade.

- Perseverar pelo real é o maior de todos os sonhos. Assim o fiz. Na procura dela, lutei na realidade pelo maior sonho da minha vida. É assim que temos que fazer, Mariana. Nunca esperes pelos sonhos.

- Por vezes é melhor, Sr. Hugo. Volto amanhã. Estou a gostar muito de falar consigo.

No regresso à quinta, Mariana estranhava a coincidência de factos. No entanto, procurava não envolver a sua história com a do seu velho amigo Hugo. Aquele nome era também muito vulgar e ela não queria relacioná-lo com o acróstico de Pedro.

- Mariana, vem falar com o teu pai!

- Diga, pai. Desculpe o atraso. Perdi-me no tempo.

- Pois é justamente por aí que eu te quero falar. Sinto-te perdida no tempo e cuido-te mais afastada de tudo e de todos.

- É só impressão sua, pai.

- Será? Bem te conheço, filha e tu não consegues ocultar a tristeza que evidencias no teu sorriso. A tua mãe anda preocupada contigo. Falou-me num tal de Pedro.

- O Pedro não tem culpa de nada.

- Mas não estou a culpar ninguém, filha. És uma mulher responsável e confio na tua maturidade, para saberes bem aquilo que queres da vida. Há tantos Pedros por aí, não é filha? Com certeza não te merece, filha.

- Quem não o merece sou eu, meu pai! Amanhã falamos. Preciso de descansar.

A angústia estendida nos lençóis relembrava cada uma das palavras do Sr. Hugo. As cartas fora do baralho perdidas na fonte de todos os desejos desorientavam o seu pensamento. Eram justamente as cartas que ela dispunha na mesa e que traçavam o seu destino. Pedro não aparecia na sina e Mariana ansiava pela carta que chegava no dia seguinte.

Porto, 12 de Novembro de 1953

Querida Mariana,

Ainda espero pelo teu sorriso. Aguardo serenamente pela tua vontade de me quereres para ti. Desconheço as tuas razões, mas sinto que elas desconhecem a pureza do teu amor.

Procurar-te-ei no sonho com a esperança de que alguém já tenha corrido em teu auxílio.

Um beijo pleno de Amor

Pedro

Era evidente que em cada palavra do velho Hugo, Mariana via convergir misteriosamente a sua própria história.

- Bom dia, Sr. Hugo!

- Hoje veio cedo, menina!

- Não, você é que chegou tarde. Aliás chega sempre, não é?

- Esse sorriso revela o sonho ou estarei enganado?

- É verdade! Ontem sonhei muito. E você?

- Eu também sonhei. Sonhei que havia encontrado os velhos que jogavam às cartas e que um deles me pedira ajuda.

- Ajuda? Para quê?

- Para encontrar a carta desaparecida na Fonte dos Baralhos.

- Encontrou-a?

- Nem em sonhos, menina! A carta nunca aparece.

- Quer dizer que o velho perdeu o rumo.

- Isso nunca se saberá, menina!

- Então conte-me lá o resto da história. Depois da carta, voltou à fonte?

- É claro que sim. Prossegui com a força da esperança e aguardava por ela todos os dias. Diziam que andava louco, mas tal como Ulisses fez ao seu povo para não partir para Tróia, procurava fazer ver que tal era verdade. Assim, poderia usufruir com maior propriedade do meu devaneio consciente. Aliás, Cristina sabia muito bem que na reflexão dos espelhos da minha alma eu me apresentava como sempre. Estava consciente de tudo e que toda a inconsciência do boato não era mais do que a absoluta fertilidade na imaginação do povo. A minha ida diária à fonte era entendida como uma patologia atinente ao enguiço da Fonte dos Baralhos. Queriam levar-me para aqueles curandeiros que dizem o que não sabem e sabem o que não querem dizer. Era visto como o desgraçado que andava perdido e que até já chegava a horas para jantar. Cristina era vista como a causa das coisas, mas só por aqueles que injustamente se intrometiam na vida alheia de quem estava alheio a tudo isso. Com esta sucessão de factos, fiz questão de escrever ao meu Amor:

Quem desconhece a sua força

desdenha a sua essência pura

que nem a verdade torça

a mentira da sua amargura

Bem sabes que estou bem

Vivo toda a sua substância

Ninguém saberá, porém

Que nada se traduz pela distância

Este é o verdadeiro Amor

Aquele que dá e não pede

Na fria fonte do calor

Não bebo, mas tenho sede!

Espero o teu olhar com a luz do teu sorriso!

- Ela lia a sua poesia?

- Claro que sim! O seu sorriso era diferente, sempre que as minhas palavras preenchiam a sua alma. Um dia, Cristina apareceu na Fonte dos Baralhos e abraçou toda a minha alegria. Não conseguia suster tamanha emoção ao vê-la ali, bem perto do pulsar do meu coração. Nem sequer sabia o que lhe dizer. Queria perguntar-lhe porquê, mas deixei-me enlevar pela grandiosidade daquele momento.

O telemóvel voltou a interromper a atenção de Hugo.

- Hoje não vou jogar, não me apetece! Desculpa lá.

Ele estava mesmo resolvido a ver a grande final, a decisão que determinaria a parelha vencedora da tarde. Observava atentamente a constante troca de olhares, uns manhosos, outros doutos e alguns ainda dissuasores de eventuais riscos. Hugo tinha a certeza de que a sua presença ali junto dos outros não era o acaso, mas a obra de um destino estabelecido no olhar de um enigmático ser que o atraía.

Voltava a seguir Mariana e via-a, de facto, sentada no banco do jardim sempre com aquele olhar pensativo e profundo, vogando à deriva parecendo perdida no encanto do momento. Parecia querer montar uma teia e o livro que lia nada lhe dizia. Era um ar sonhador com resquícios de dor e de emoção.

- Então encontrou-a na Fonte dos Baralhos e tudo ficou bem, não foi?

- Não, menina. Paradoxalmente, desencontrei-a naquele momento. A presença dela não era a mesma como se tivesse ela a perder a carta da Fonte dos Baralhos. Olhava-me preocupada e ansiosamente. Não explicava tal postura perante mim. Procurei desmistificar aquela atitude de Cristina e demovê-la de uma expressão magoada. Não era a mesma pessoa que acolhia feliz todas as minhas palavras e todos os gestos que partilhávamos. Tinha algo a dizer-me, mas a sua liberdade prendia-a e bloqueava todos os seus movimentos. Estava atónito com a desmesurada felicidade em tê-la por perto e revoltado por senti-la tão longe. Ela queria contar-me alguma coisa, mas os seus olhos resfriavam o mimetismo do momento. Parecia inacreditável o esmorecimento de tantas esperanças. A água corrente não trazia aquelas que tinham sido passadas com alegria. Preferia mil vezes viver aquele encanto de um regresso que parecia impossível. Cristina não estava definitivamente a ser genuína.

- O que aconteceu com ela? – questionou Mariana plena de curiosidade.

- Na altura, desconhecia por completo as razões dela. Essas razões assustavam-me até. Preferia continuar com aquele sonho e protelar o real para um momento mais tardio. Fazia de conta que não tinha detectado uma conduta diferente, como que se aqueles olhos dela, sempre tão reveladores, deixassem de se exprimir claramente. Mas estes não me enganavam e os olhos de Cristina estavam preocupados e cerrados numa dor que eu próprio desconhecia.

- Então, Hugo? Hoje falamos sobre o quê? – perguntava-me ela num tom ansioso.

- Falaremos sobre ti, pode ser?

- Falamos sempre sobre mim, meu amor. Esquecemos sempre a tua vida.

- Se falarmos sobre ti, falaremos da minha vida também. Bem sabes que tudo em mim depende de ti, depende do teu bem-estar.

- Mas tu não tens estado bem, pois não?

- Por que havia eu de estar mal, quando te tenho por perto?

- Sim, mas a minha ausência magoou-te. A mim não me poderás iludir. Bem sei que aqui vieste imensas vezes. Procuraste a minha presença e ficaste baralhado com a própria fonte que já não era a mesma.

- Mas via-te, Cristina. E ao ver-te acomodava a minha alma, recarregava a esperança do teu regresso e encarava o resto do dia com outra força.

- Quem me dera que nada disto estivesse a acontecer.

- Como dizes? Estás aqui e isso é que conta para nós. A tua ausência não se verificava no meu pensamento. Amei-te de igual forma e peço-te que não penses no contrário.

- Porque é que não me exiges uma explicação, Hugo? Porque aceitas assim o meu regresso, após tão sentida e inexplicada ausência?

- Nada do que me poderás dizer será suficientemente forte, para negar a tua verdade.

- O teu Amor por mim ultrapassa grandemente a razão, mas por vezes temos que enfrentar as condicionantes próprias da vida.

- Cristina, nada poderá afectar a pureza extrema daquilo que sinto por ti. Bem sabes que, tal como esperei sete semanas, esperaria sete meses, setes anos. Iria aguardar pelo momento que implicasse o teu regresso. Esse iria ser sempre legítimo, sempre digno de uma clara aceitação da minha parte.

- A tua convicção impressiona-me. Assusta-me até. Eu não mereço tanto, Hugo.

- Bem sabes que sim, meu Amor!

- Um dia saberás a razão da minha ausência. Explicar-ta-ei minuciosamente e aí sim. Aí poderás julgar a legitimidade do teu nobre e elevado acolhimento. Um dia voltarei.

- E eu esperarei por ti. Virei cá todos os dias.

- Não precisas, Hugo. Saberás quando voltar.

Assustava-me a racionalidade de Cristina. Tinha medo das frases, receava a palavra seguinte como se fosse a derradeira. Ela era muito mais poética do que eu. Vivia a cada minuto um romantismo exacerbado e agora a sua gélida convicção racional agitava-me. Todavia, o meu amor por ela sobrelevava-se acima de quaisquer receios.

- Voltou à Fonte dos Baralhos, Sr. Hugo?

- É óbvio que sim, Mariana. Nem sequer me passaria pela cabeça não fazê-lo. Aqueles momentos na Fonte emulavam o meu espírito. Era feliz com a certeza de que continuava a amá-la exactamente da mesma forma. Nem a sua ausência durante dias beliscava a minha determinada convicção.

- Não estranhava tanta ausência?

- Vivia o dia com a força do seu Amor e não me afectava encontrar-me só naquela Fonte. Sabia que um dia ela iria voltar. E, nesse dia, ela faria questão de plasmar superiormente todo o seu encanto, consubstanciado pela silhueta formosa de um corpo que desejava. Os seus longos cabelos encaracolariam os meus sentidos hipnotizados pelos seus olhos, que se camuflavam ante a decisão do sol. Sonhava com esse dia todos os dias e regressava ao trabalho com um optimismo incompreendido pelos outros. Na verdade, julgavam que enlouquecera com tal sentimento. Mal sonhavam eles que esta era loucura mais bela. Era a loucura reveladora de toda a razão da vida, a loucura de sonhar e de viver sempre acompanhado na maior das solidões. Chamavam-me para a bola, para ouvir o relato naquele velho rádio que funcionava às vezes e que se calava quando o jogador do Porto corria isolado para a baliza. Eu até ia, mas nada me demovia daquela convicção. Descobrira em mim uma faceta sublime, que me privilegiava em relação ao mais comum dos seres humanos.

Num dos meus regressos à fonte, ela já me esperava chorando copiosamente. Não hesitou em correr para os meus braços e agarrar-me com toda a força. Não tive a coragem sequer de interrompê-la e perguntar-lhe o que quer que fosse. Deixei-a falar.

- Não pode ser. Não pode ser! Já chega, Hugo! Chega de um sofrimento mútuo que ocultas com a tua ilusão. Chega de me procurares, quando sabes de ante mão que não irei aparecer. Quero contar-te. Quero contar tudo para não me julgares mais tarde. Apesar de tudo é a ti que eu amo. Era contigo que eu queria ultrapassar todas as adversidades dos tempos que vivemos, mas o mundo é muito injusto para quem pugna pela justeza dos encantos de um coração. Queria sair daqui, queria partir para outro local. Nada mais faz sentido neste sítio, nada mais faz sentido nesta fonte que secou o sangue que corre nas minhas veias. Vou partir, meu Amor!

- Vais partir para onde? Aqui ao meu lado estás bem. Seja o que for que te apoquente, cá estarei para te ajudar. Tenho a certeza de que te posso ajudar a superar a tua infelicidade. Cá estarei a lutar por ti, perseverei até ao regresso do teu sorriso. Nada é mais forte do que o nosso Amor.

- Hugo, a tua ilusão engana-te. Não é possível encontrar uma solução onde esta pura e simplesmente não se encaixará. Desconheces as minhas razões. O destino não quis a nossa prosperidade. A força das tuas palavras, o encanto da tua poesia esmorecia-se na realidade dos factos. É isso que te vou contar agora. Assim me compreenderás e seguirás o teu caminho.

- O meu caminho, seja ele qual for, determinar-se-á em teu redor.

Mariana chorava com a emoção do azul dos olhos de Hugo. Não conseguia conter a amargura de se rever naquela história.

Voltava para casa com a vontade de sonhar com Pedro, para assim viver a sua própria história. Pensava inclusive em partilhar a sua história com o seu novo velho amigo.

Entretanto, uma nova carta de Pedro surgia e ansiosamente Mariana buscava, faminta, as palavras do seu Amor.

Porto, 14 de Novembro de 1953

Querida Mariana,

Bem sabes que aguardo serenamente pela grandeza do teu olhar. Aguardo que os teus olhos vejam os meus, sempre com esse brilho que rejuvenesce a minha alma.

Cá estarei para acolher os teus braços e para te ouvir. Saberei compreender o que me queres dizer. Sabes onde estou e, quando assim o pretenderes, não hesites em tornar-me o homem mais feliz do mundo.

Com muito Amor e eternamente teu:

Pedro

P.S. Não te esqueças de pôr as cartas na mesa!

Chorando, Mariana cismava com aquele conselho enigmático de Pedro. Não compreendia a coincidência daquela sugestão. Incomodava-a aquele pressentimento do seu Amor. Sentia-se decidida a aparecer, tal como Cristina. Queria abraçá-lo, fazendo merecer a sua presença.

Contudo, pensava que ainda era cedo. Sabia que Pedro esperava por ela, crendo nas palavras que lia e relia vezes sem conta. Estava decidida a absorver na íntegra aquilo que o seu velho novo amigo lhe iria dizer. Ansiava como ninguém o dia seguinte, imaginando quais seriam as razões de Cristina. Comparava-se cada vez mais a ela. Havia-se estabelecido um paralelo intertextualizado com o seu fado. Esperava para ver.

Assim, não era difícil encontrá-la no admirável gesto do voluntariado, esperando a chegada do seu novo confidente.

Naquela tarde, tudo foi diferente. O Sr. Hugo não apareceu ao encontro e Mariana sentia-se perdida num misto de curiosidade e ânsia pelas palavras que poderiam advir.

Não se cansou de procurá-lo, nunca deixando de prestar gentilmente a sua simpatia inesgotável aos transeuntes e preencher de positivismo o marasmo das solidões.

Paradoxalmente, naquele dia era ela que se sentia só. Estava perdida no vazio. Ter-se-ia desvanecido a réstia da esperança, a esperança que depositava nas palavras que no fundo eram também as suas. Ele terá tido as suas razões, pensava.

- Ó Hugo, isto está difícil. Nem sequer amanhã vamos sair daqui! Bem, mas tu nem sequer estas cá. Foi fugaz o teu interesse pelas cartas.

- Não, não é isso. Distrai-me com aqueles dois naquele banco do jardim. Por que razão estarão eles a discutir tanto, Sr. Zé?

- Deixa lá, meu bom rapaz. Aquilo é saudável. Assim ninguém esconde nada de ninguém. É bem melhor assim, acredita! Se alguém esconde uma palavra, alguém poderá nunca mais encontrá-la, nem se encontrar a si mesmo.

- Isso já lhe aconteceu?

- Vê o jogo! Isto hoje está interessante!

- Tem razão. Hoje estou a aprender muito.

- Vá, então concentra-te e ajuda-me a ganhar para os tremoços.

Ao regressar a casa, Mariana tinha um bilhete em cima da mesa e, surpreendentemente, não era de Pedro.

Minha amiga Mariana,

Peço-lhe imensa desculpa, mas hoje não pude ir ter consigo. Quero confessar-lhe que hoje me distraí com uma senhora no banco do jardim. Conversámos muito e quando fui ter consigo já era tarde. Sei que me vai compreender. O meu desabafo para consigo está a fazer-me muito bem.

Até amanhã!

Sr. Hugo

Tais palavras acalmaram-na, mas logo de seguida surgiam-lhe as de Pedro. Que quereria ele dizer com “pôr as cartas na mesa”, pensava Mariana, inquieta com tal oportunidade de Pedro.

Estaria ele a par do dilema de Mariana, ou terá sido apenas mais uma coincidência.

Independentemente disso, após o ritual das cartas o rumo de ambos era sempre o mesmo. A carta determinadora da eterna felicidade de ambos não aparecia e Mariana voltava a chorar. Desejava até ignorar tudo aquilo e não adicionar mais sofrimento ao seu Amor.

Pensava até envolver-se nas garras do destino e lutar pela sua mudança todos os dias. Mas as razões apontadas pela disposição das cartas, falavam mais alto e Mariana não queria que nada de mal pudesse acontecer a Pedro.

No entanto, quis aguardar novas do seu amigo e aferir da coincidência ou não das últimas palavras de Pedro.

Um outro dia volveria e algo de novo podia surgir.

Sorridente, o Sr. Hugo já esperava por Mariana.

- Desculpe, menina. Tomei a liberdade de lhe escrever um bilhete e deixá-lo pelo seu pai. Já o conheço há imenso tempo. Jogava com ele às cartas e nunca perdíamos uma única partida.

- Você conhece o meu pai?! Este mundo é mesmo bem pequeno.

- É verdade! É muito bom homem e está preocupado consigo.

- Os pais são todos assim. É a menina dos seus olhos que se quer escapar entre os seus dedos.

- Não é isso que o preocupa, acredite. Ele encontra-a mais distante e receio que a nossa conversa tenha algo com isso.

- Vá, não diga asneirolas. Jogava às cartas com o meu pai e não me dizia nada!

- Eu também não sabia que o Joaquim era o seu pai!

- Ele nem sequer gosta de jogar às cartas!

- Não, ele gostava e muito. O que se sucedeu é que, a partir daquele dia, prometeu nunca mais jogar às cartas.

- Então e porquê?

- O seu pai tinha um gosto imenso pelo seu baralho. Com aquele “nunca perdia, nem sequer a feijões”, dizia.

- O meu pai?! Ter um baralho de cartas?!

- É verdade! Desde que perdeu aquela carta, nunca mais quis jogar à sueca. Temia pela felicidade das pessoas que mais amava.

- Mas que preconceito o dele!

- Ele tinha a sua razão. Perder uma carta naquele fonte…

- Na Fonte dos Baralhos? – interrompeu apavorada.

- Sim, era com ele que eu gostava de jogar. No dia em que deixou escapar aquela carta para nunca mais a encontrar, absteve-se de querer mais alguma coisa com aqueles pedacinhos de papel. Não queria que nada de mau acontecesse aos seus. Toda gente receava a perda do rumo, com a perda de uma simples carta na Fonte dos Baralhos.

- Que ideia a vossa! Fiquei contente por saber que o conhece!

- Eu também! Acredite que gostei mesmo de testemunhar esta coincidência.

- Agora, conte-me lá o que se passou com a Cristina.

- Porque é que está tão curiosa?

- Encanto-me com o brilho dos seus olhos, quando fala nisso.

- Pois bem, continuarei! Cristina estava realmente decidida a contar-me tudo o que lhe ia alma e tal não era nada bom. Cristina sentia-se ameaçada por alguém que lhe privara a felicidade, havia já algum tempo. Entretanto disse-me:

- Hugo, bem sabes que só tive olhos para ti. Mas agora sei que é tarde demais para te ter.

- Tarde demais, porquê? – perguntei.

- Sei agora que os teus olhos nunca mais poderão ver os meus da mesma forma. Tu não me queres dizer. Não queres admitir que já não sou a mesma para ti.

- Então, meu amor? Porque haveria eu de pensar assim.

- Mas dizem-me que estou diferente, desde que te aconteceu aquilo.

- Não compreendo, meu amor. Nada me aconteceu.

- Tu sabes bem que sim. Apenas lutas diariamente contra a inexorável marca do destino.

- Por que razão deveria lutar contra o destino, se o meu destino é ter-te a meu lado.

- Não entendes? Não vês que jamais poderemos ser um só ser?

- Estarei mesmo a ficar louco, Cristina?

- É essa loucura que me desfaz. Quanto mais me desejas, mais perdida me sinto. Queria tanto encontrar-te como antes.

- Eu sou e serei sempre o mesmo. Não compreendo o teu desespero.

- Um dia entenderás. Como consegues ainda amar-me dessa forma?

- Amo-te como sempre te amarei.

- Fugirei. Partirei para outro local e tu viverás feliz.

- Cristina, bem sabes que a minha felicidade se traduz no teu bem-estar.

- Então não és feliz, pois não estou bem.

- Felicita-me o facto de saber que luto por ti e que em cada sorriso teu há como que um rejuvenescimento do meu ser.

- Não vou desistir assim de ti. Contra tudo e contra todos cá estarei para te provar o quanto te enganaram.

- Hugo, eu não te mereço. Eu não mereço a tua atenção. Perdi-me no vasto mar da incerteza. Mas a certeza da nossa infelicidade impede-me de ser quem sou. Só tu não vês, Hugo!

- Que certezas podemos ter? Na vida, só temos uma certeza. Bem sabes qual é.

- Garantiram-me outra coisa. Disseram que jamais poderia viver contigo.

- Quem te pode garantir tal coisa, Cristina?

- Não importa quem, nem como. Eu acredito nas palavras de quem me quer bem.

- Então e eu? Nunca pensaste em mim e na eventualidade de estarem a iludir-te.

- Estou bem certa do que me dizem. Nem imaginas o quanto me custa encarar o azul dos teus olhos e afogar-me no desencanto dos mesmos. Adeus, Hugo!

- Lutarei por ti e contra quaisquer ilusões que te criaram. Amo-te e não vou querer perder-te, porque nada poderá demover-me da infinita constância do estado da minha alma. Procurar-te-ei eternamente, meu amor!

- Então, tudo ficou por aí?

- Na verdade, o mundo desabou nesse dia. Para mim, perdê-la para sempre era reduzir-me numa simples gota da última lágrima que deixei cair no vazio. Contudo, naquela gotinha cristalina encontrei a força para viver a vida e segui o meu caminho para lutar, sem saber exactamente quais as verdadeiras razões da convicção do meu amor que me deixou periclitante. Vá, Mariana. Permite-me que me ausente por hoje. A minha alma treme, quando recordo tal momento.

- Sim, Sr. Hugo! Falarei de si ao meu pai.

Mariana quebrou com a angústia evidenciada por aquele homem, cujos olhos ainda brilhavam em nome de um amor soberbo. Pensava em Pedro e receava o seu sofrimento. Estava até por momentos tentada a ignorar tudo e correr para os braços de quem a merecia, olvidando o ónus determinado pelas cartas. Caía em si e racionalmente derrotava a égide de um coração cada vez mais conformado com o fado cantado pelo baralho.

Ao jantar, Mariana mastigava uma ânsia para falar de Hugo a seu pai, mas não queria interromper a conversa entre aquela família feliz.

- Então, filha linda. Que trazes nesse teu ar contemplativo?

- Quando te contar, nem vais acreditar pai.

- Então porquê? – interveio, franzindo o olho.

- Com que então gostavas de jogar às cartas, pai!

- Quem te disse tal, filha. Esse gosto desvaneceu-se, quando nasceste. Era um fraco vício. Só servia para esquecer a verdadeira essência da vida e eu não gosto sequer de relembrar esses tempos.

- Então e o seu velho amigo Hugo?

- Hugo? – retorquiu admirado o pai de Mariana. Esse homem está doido. Perdeu-se completamente com a frustração de uma perda irrecuperável. Nunca mais foi o mesmo. Era muito boa pessoa, Mariana. Mas amava muito uma mulher que o deixou e ele, apesar de tal afastamento, congratulava-se com o seu sofrimento de amor. Nós bem que lhe dizíamos para vir connosco, mas ele insistia em voltar para aquela fonte, sempre à mesma hora e esperava por quem sabia de ante mão nunca lá voltava.

- Para a Fonte dos Baralhos, não é?

- Que sabes de tu desse local? Já lá estiveste?

- Não, pai. Mas sei que tu a conheces bem.

- Na verdade, conheço a fonte. Ia para lá todos os fins de tarde, jogar às cartas.

- E jogavas com o Sr. Hugo. – intervinha alegremente a curiosa Mariana.

- Sim, era um óptimo parceiro. Inteligentíssimo, bem perspicaz. Sabia sempre colocar a carta atempadamente, no momento exacto. Dava gosto ganhar com ele.

- Então e depois, pai? Porque é que deixaste de jogar às cartas?

- Nada de especial, filha. Tu nasceste e já não fazia sentido perder aquele tempo indispensável para ajudar a tua mãe.

- É verdade, filha. O teu pai foi um homem exemplar. Ajudou-me muito, quando adoeci após o teu nascimento. Ele trocava as tuas fraldas e dava-te de comer.

- Estiveste assim tão mal, mãe? Nunca me tinhas dito nada antes.

- Nunca calhou, filha. Bem, não vale a pena recordarmos esses dias tristes. O que conta é que estamos bem agora. Falemos de outra coisa, está bem? Falemos de ti, Mariana. Andamos muito preocupados contigo. Como vai esse teu amor?

- Mãe, não quero falar disso. Para já sinto-me bem assim sozinha. Eu não o mereço, mãe.

- Não o mereces?! Meu amor, já olhaste bem à tua volta. És uma pessoa única, com um coração do tamanho do mundo! A tua alma é bondosa e díspar

- Nem sempre isso é tudo, mãe. Vou dormir.

Mariana saiu sem saber se havia de estar triste com o estranho comportamento do pai, que desviou a conversa da Fonte dos Baralhos ou chorar com as saudades de Pedro.

Ao mesmo tempo, a mãe de Mariana acelerou o passo para falar com o seu marido. Apercebera-se de que este não ficara agradado com o inesperado regresso ao passado. Àquele passado ainda recente, no qual temeu a infelicidade da sua alma. Aquele passado que determinou a doença da mãe da Mariana. Uma doença que terá tido a sua origem na perda daquela velhinha carta do seu desafortunado baralho, que desvirtuava o destino dos entes queridos.

- Joaquim, não fiques assim. Tudo já passou e viste bem como eu ultrapassei a minha fraqueza. Já viste como está a nossa Mariana? É uma bela mulher, uma pessoa bondosa plena de notáveis valores. Que mais podemos querer, meu amor?

- Sabes, Paula? Bem sei que fomos capazes de transpor a adversidade daquela fase má. Mas recordas-te daqueles tempos horríveis em que procurávamos incessantemente aquela carta que desapareceu? Andávamos loucos, tal como o Hugo que se perdera naquele local e nunca mais recuperou. Toda a gente tinha pena daquela pobre criatura. Falava sozinho e declamava poemas à Cristina.

- Que é feito dela?

- Nunca mais a vi. Sofreu muito com a doença do seu amor por Hugo. Desesperou com o desespero incontrolado das palavras que ouvia. Os pais dela também não a ajudavam. Foram sempre muito religiosos e acreditavam nas maldições do demo. Acreditavam inclusive que Hugo era uma reencarnação maldosa e pediam todos os dias à sua querida filha para fugir dele. A Cristina nunca teve coragem de contar a Hugo as verdadeiras razões do seu afastamento. Sentia uma pressão imensurável por parte dos pais e das beatas que nunca se calavam com a loucura dos devaneios do jovem apaixonado. Pobre Cristina…

- Mas a verdade é que Hugo enlouqueceu mesmo, não foi?

- O que é facto é que parecia uma criança dotada de uma imaginação peculiar para falar com as pedras e sonhar com as árvores que o abraçavam. Estava completamente diferente. Era um jovem bem disposto e brincalhão. Gostava de ver os velhos a jogar às cartas e falava muito com eles. Dizia que aprendia muito com as verdades empíricas daqueles jovens de cabelos brancos que, mudos da sueca, tanto lhe ensinavam. O que é facto é que ele jogava como ninguém e nunca perdíamos uma partida. Lembro-me até de nos dizerem desesperadamente para não jogarmos, tal era a previsibilidade do desfecho.

- Perdeu-se com a tristonha sina de um amor não impossível, mas impossibilitado. – completou Paula.

- E era um homem feliz. Vivia conformado com a pobreza e trabalhava com orgulho das suas mãos. Tinha sempre um sorriso para dar. Ainda me lembro de ouvir a sua mãe a chamar por ele sofredoramente. Ele só dizia que ela já sabia que voltava mais tarde ou mais cedo. Mas depois daquele dia em que se despediu de Cristina, nunca mais foi o mesmo. Parecia um histérico que cantava para não chorar. Via os seus amigos afastarem-se da loucura que acompanhava o azul desbotado de um pranto oculto. Ficou perdido numa miríade de estranhas sensações, de alucinações deambulatórias. Chamávamos-lhe carinhosamente o D. Quixote do Marquês.

- Tenho pena dele, Joaquim. Que andará ele a contar a Mariana?

- Não sei, mas receio que ele esteja a inventar histórias acerca do seu amor perdido e que condicione o estado de espírito da nossa filha.

- É melhor tentares falar com ele.

- Não, Paula. Deixemo-nos de falar disso. Se calhar, estamos a exagerar com o devaneio daquele pobre velho.

- É melhor descansarmos. Até amanhã, Joaquim.

- Dorme bem, meu amor!

O sono de Joaquim foi muito perturbado. Não conseguia dormir com o inesperado retorno daquele episódio que tanto apoquentou a sua vida. Não queria entender como é que o velho amigo Hugo voltou ao pensamento, volvidos doze anos. Sabia aliás muito bem que a travesseira de tantos anos lhe confidenciava uma certeza. A certeza de que o que Joaquim mais queria era a felicidade da sua filha e da sua mulher.

No dia seguinte, foi ao quarto de Mariana para um beijo matinal. Ela ainda dormia e expressava um sonho belo. Estaria com certeza a contar a Pedro as palavras daquele velho eternamente apaixonado. Saiu e esperou pelo pequeno-almoço.

- Bom dia, filha!

- Olá, pai. Dormiste bem?

- Nem por isso, Mariana. Hoje vais ao voluntariado?

- Vou, queres vir comigo para falar com o Sr. Hugo?

- Não, filha não ligues a esse velho tonto.

- Estás a ser injusto, pai. Parece-me uma pessoa bem inteligente e bem certa do que diz.

- D. Quixote também estava certo do que dizia, no entanto…

- Ó pai, que dizes tu? – interrompeu Mariana visivelmente incomodada.

- Não faças caso, filha. Peço-te desculpa. Eis o fruto de uma noite mal dormida.

Estranhando cada vez mais a atitude do seu pai, Mariana desejava ainda mais conversar com o Sr. Hugo. O incómodo evidenciado pelos pais dela antevia algo mais e a impressão de que aquele encontro fortuito não terá sido um acaso. Queria agora ir mais além. Saber tudo o que envolvia aquele homem dado como louco.

Pela tarde, lá voltou o Sr. Hugo com um ar cansado e triste. Mariana correu em direcção do seu novo velho amigo.

- Então que se passa?

- Está tudo bem, Mariana. Dormi mal esta noite. Tive um sonho estranho, mesmo estranho. Mas não o vou contar, pois dizem que se o contarmos voltaremos a sonhá-lo e eu não quero relembrar tais momentos.

- Quem sou eu para pedi-lo. Sabe, o meu pai ficou muito contente em saber que você está bem.

- A sério? Ah, esse malandro nunca mais quis saber de mim. Deve pensar que estou doido varrido.

- Por que razão diz isso? Está bem enganado, Sr. Hugo.

- Não, Mariana. Não estou enganado não. O teu pai foi um dos últimos a esquecer-me, mas não o censuro. Compreendi e compreendo as razões dele. Ele teve medo, mesmo muito medo da felicidade dos seus. Não queria ficar desamparado na vida, tal como ele me via.

- Mas porquê? O que se passou consigo e com o meu pai?

- Ainda é cedo. Se eu te contasse já, não compreenderias as razões do teu pai. Tenho sono, Mariana! Até amanhã!

No jardim, o jogo era derradeiro. O Sr. Zé parecia ansioso com a próxima jogada. Esperava pela sua vez para deitar a carta que mudaria o rumo daquele resultado.

- Então, Hugo! Já dormes? Logo agora que eu virar o jogo para a vitória.

- Desculpe, dormi mal na noite passada.

- Vá lá! Já não suportas mais a persistência do impasse deste jogo.

- Não, não. É justamente durante o impasse que o desafio se torna mais interessante.

Mariana não sabia muito bem o que havia de fazer após a saída extemporânea do seu novo velho amigo. Ficara indignada com a resposta lacónica daqueles olhos azuis que tinham muito mais para dizer. Mesmo assim, Mariana pensou em deixar as coisas fluírem naturalmente, convicta de que aos poucos viria a descobrir tudo sobre aquela história. Sentia que esta não era uma história igual a tantas outras que ouvia, durante as suas conversas no voluntariado.

O regresso a casa implicava agora também uma inevitável dádiva de satisfações, mas isso não a preocupava, pois estava decidida a não ocultar a verdade dos factos aos seus pais que andavam preocupados com a sua filha.

No entanto, o facto do seu pai estar agora envolvido na história implicava que este esclarecesse a sua mudança de estado de humor, quando se falou no tal D. Quixote do Marquês. Entrou decidida a desvendar o mistério.

- Olá pai! Então o teu dia hoje?

- Foi muito bom, filha! Eu e a tua mãe fartamo-nos de passear. Esteve um sol maravilhoso e não hesitamos em revisitar a praia e lembrar outros tempos!

- Não temos falado noutra coisa nos últimos tempos!

- Em quê, filha?

- De outros tempos, de tempos idos que voltam sempre!

- Vá, filha! Isso já passou. Calculo que estiveste outra vez com o Hugo. O que é esse doido te contou desta vez?

- Ele não é nenhum doido! O pai está enganado em relação ao Sr. Hugo. Quando o ouço falar dele, penso até que se está a referir a outra pessoa.

- Com certeza que não estou, Mariana. O melhor é esquecer isso. Descansas um pouco do voluntariado e falas mais tarde com o Hugo.

- Com o devido respeito, pai. Porque é que procuras mudar logo de assunto, quando falo nele?

- Filha, acho verdadeiramente desnecessária essa conversa. – afirmou visivelmente incomodado.

- Não quero que te aborreças comigo, mas peço-te que me deixes falar com o Sr. Hugo.

- Para mim, é tempo perdido. Mas tu é que sabes, filha.

- Até amanhã, pai. Prometo não voltar a falar-te dele aqui em casa.

Mariana regressou ao seu quarto e voltou deitar as cartas, mas nada de novo surgira. Sempre o mesmo desfecho. Pensava até que já estaria a ficar louca com aquele ritual. Pedro não fazia parte daquela disposição, mas Mariana sonhava que um dia tudo fosse diferente e conseguisse ultrapassar todos os seus medos, vivendo assim aquilo que mais queria na vida e dar azo aos sonhos mais puros e verdadeiros de um sentimento com provas dadas, de um amor inesgotável revelado por Pedro. Um amor tão genuíno e são como o de Sr. Hugo para com Cristina. Mariana questionava-se sobre como terá terminado toda aquela história, perspectivando o desfecho da sua em relação a Pedro.

A chegada do dia seguinte pareceu uma eternidade. Mariana queria mais do que ninguém reencontrar o seu novo velho amigo. E lá estava ele a jogar à sueca com mais uns velhos amigos.

- Faz-lhe falta o seu velho parceiro?

- Ah, sim. Esse conhecia-as de trás para a frente. Sabia contá-las bem.

- Ele agora não gosta de cartas.

- Também pudera! Hoje já não jogo mais.

- Explique-me lá bem isso, Sr. Hugo?

- Esta bem, menina! Como já lhe disse, o teu pai tem fortes razões para não querer ver mais baralhos à sua frente. Desde aquele fatídico dia em que perdeu a carta, ele viu a sua vida mudar diariamente. A tua mãe ficou muito doente e foram tempos muito difíceis. O estado débil da sua saúde agravava-se e o teu pai estava desesperado, exasperado por tamanha injustiça. Não queria acreditar que tal lhe estava acontecer por causa daquela simples cartinha que aparentava ser inofensiva. Receava igualmente ficar louco como eu. Dizia até que a minha decadência estaria inextrincavelmente relacionada com o facto de eu ter testemunhado aquele triste episódio. Assim, o teu pai prometeu-me que nunca mais jogaria às cartas com ninguém. Lamentava o meu estado de aparente loucura e desorientação. Dizia que queria também ajudar-me, mas não sabia como. Não ouvia os meus conselhos, considerando-os inconsequentes e desguarnecidos. Fazia um esforço tremendo em acompanhar os meus devaneios aparentes. Pensava inclusive que no fundo, bem lá no fundo do seu pensamento, ele sabia que eu estava pleno da consciência dos meus actos e que a pena dos outros para comigo era puro capricho.

- Mas também deixou de falar consigo, não foi?

- Não foi por mal, querida! Ele tinha forte razões para se afastar das suas antigas vivências. Era a saúde das pessoas que ele tanto amava, que estava em questão e ele queria-vos mais do que tudo nesta vida. E tudo ficou melhor.

- Então e depois de tudo ficar bem connosco, ele não quis saber mais de si?

- Convenceu-se de que o meu estado ter-se-ia agravado e que já nada havia a fazer comigo. Deixou-se levar pela triste e caluniosa razão do boato. Fui completamente esmagado pela sociedade.

- Que tremenda injustiça, Sr. Hugo! Nunca pensei que o meu pai fosse capaz de perdê-lo no esquecimento. Afinal, ninguém o conhece verdadeiramente. Então e a Cristina?

- A Cristina foi também sugada pela crença de todos e ela própria via-me com os olhos dos outros até aquele dia.

- Qual dia, Sr. Hugo?

- O dia em que a Cristina pressentiu-me no encanto da telepatia de um Amor não esquecido.

- Que lindo! – exclamou maravilhada. O que aconteceu?

- Andava no campo a lavrar a terra para o próximo cultivo e num regresso pela voluptuosidade do crepúsculo precipitei-me num poço bem fundo, perto da minha antiga casa. Era dado como morto por todos. Diziam que eu me suicidara pelo insustentável e desmesurado clímax da perdição da loucura. Viam-me como o Romeu que interrompera a sua vida, sem poder amar a sua Julieta. Porém, incomodavam-se agora com a inexplicável indiferença do sorriso de Cristina. Seria ela a única a ter a certeza de que eu não estava morto. Convencia-se que eu havia apenas fugido de tanta indagação infundamentada. Ela sorria para não chorar a morte que o seu coração ainda não lhe tinha anunciado.

- Então e como saiu daquele poço, Sr. Hugo?

- Sabes, Mariana? Senti-me como aquele burro cujo dono não tinha coragem para abater e fora arremessado para um poço bem fundo.

- Que burro?

- Não conheces a história, Mariana?

- Que história? – perguntou entristecida.

- Pois é, então ouve bem Mariana. Ela dir-te-á muito, tal como disse a este velho louco que de louco nunca teve nada.

- Conte lá, Sr. Hugo.

- Como te estava a dizer o velho lavrador atirou o burro para o tal poço, apesar de gostar muito dele. Entretanto, e tal como fora aconselhado, começou a deitar terra para tapar o poço. Mas à medida que o burro era atingido pela terra, este reagia e afastava a terra para os lados. Paulatinamente, foi ganhando base e saiu novamente do poço, sem quaisquer dificuldades. Que conclusão tiras desta história, Mariana?

- Não compreendo, Sr. Hugo.

- Pois é, Mariana! Por muita terra que te atirem, por muito mal que te queiram, se tu reagires sempre, se tu lutares pela vida e pelo bem-estar como aquele velho burro, conseguirás ultrapassar todas as adversidades.

- Então foi assim que você lutou durante aquela fase da sua vida.

- Sim, Mariana. Ante as calúnias do povo religiosamente injusto, fui reagindo enlevado pelo amor que sentia por Cristina.

- E também saiu do poço!

- É verdade, Mariana! Conduzida pela cegueira adestrada pelo amor, a Cristina veio de encontro ao meu coração.

- Encontrou-o no poço?

- Sim, no regresso de mais uma ida à Fonte dos Baralhos para esperar novas minhas, Cristina parou junto do poço e chamou serenamente pelo meu nome. A leve brisa encarregou-se de fazer chegar aquele doce murmúrio junto do mim. Tive forças para responder, tal como aquele burro que heroicamente espalhou a terra para volver à bela luz do dia. Assim, reluziram os olhos do meu amor quando me viu. Ela sentiu-me por perto e encontrou-me naquele local exíguo. Disse-me que sabia que eu não estava morto, que pressentira que um dia me iria reencontrar na Fonte dos Baralhos. Contou-me também que ela própria era já dada como louca com a manifestação nefasta do boato.

- Então ela também sabia que já estava a ser vitima da cruel especulação do povo.

- Sim, ela tinha plena consciência de que não estava louca. Contudo, deixou-se levar pela pressão dos pais e de todas as pessoas e é claro que, em momentos de maior fraqueza, parecia querer convencer-se realmente do seu estado de alma. Foi num desses momentos de maior fraqueza que ela confessou ter decidido afastar-se definitivamente de mim, convicta de que só assim eu poderia ser feliz. Ela só queria ver-me feliz para ser feliz.

- Então era essa a razão de Cristina. – afirmou Mariana, manifestando uma vontade extrema de explodir num choro consolador.

- Entretanto, decidi sair daquele local com a conivência de Cristina, certo de que um dia ela iria ter ao meu destino que então desconhecia. Combinámos omitir o facto de ela me ter visto naquele poço, após um periclitante beijo breve, catapultando a eternização de um amor.

- Então e ficou tudo por ali?

- Não, Mariana. A minha estadia naquele poço mudou tudo na minha vida, alterando o sentido que esta estava a querer tomar. Saí imediatamente daquele lugar e procurei um novo rumo para a minha vida. Parti para Trás-os-Montes e recomecei a minha vida numa pequena vila chamada Izeda.

- E nunca mais viu a Cristina?

- Durante alguns tempos não a olhava concretamente, mas via-a em todo o lado, mesmo no imenso céu estrelado daquele espaço fantástico que conheci e no qual aprendi a viver.

- Mas regressou, não foi?

- Sim, regressei para ajudar um amigo. Foi e será sempre o meu destino: o de ajudar. E como eu gosto de ajudar!

A noite chegara depressa com tão encantadora revelação e Mariana estranhava cada vez mais a coincidência de factos entre aquela e a sua própria história. Convencia-se, no entanto, de que tal não passava mesmo de um acaso.

No quarto de Mariana, já a esperava mais uma carta de Pedro.

Porto, 16 de Novembro de 1953

Minha querida Mariana,

Porque te demoras tanto? Porque é que não me escreves para saber de ti. Já nem te encontro nos sonhos e tu estás longe, bem distante de mim. Como eu gostava de estar por perto para saber o que estás a sentir neste momento, mas vou esperar por ti meu amor.

Vou esperar por aquele dia em que encontrarei os teus olhos para te contemplar. Dizem que já ando a ficar louco pela minha convicção, mas estou decidido a aguardar pelo momento. Pelo nosso momento. Toda a gente tem o seu e nós teremos o nosso céu.

Um beijo pleno de Amor

Pedro

Chorando junto das palavras de Pedro, Mariana não queria acreditar que a sua própria vida estava a ser revista pelas palavras daquele pobre velho. Daquele senhor que começara por ser o objecto da necessidade de uma palavra de carinho e de afecto, para ser ele agora o condicionador e o garante da desmesurada esperança de Mariana em encontrar o seu Pedro.

Ela podia encontrá-lo em qualquer altura. Sabia que os olhos dele conviviam fixos nela, que também ansiavam por uma decisão.

Contudo ainda era tarde, o momento não se propiciava para uma decisão tão importante. Era fundamental ouvir a história até ao fim, para saber o final da sua própria história. Por vezes, Mariana desconfiava até que aquele D. Quixote via muito mais para além dos meros moinhos movidos pela eólica energia do vento. Tinha agora um confidente em quem confiava de facto, que não era louco e que sabia bem da força inabalável de um amor e tudo o que este sentimento lindo consubstancia.

O amanhecer surgiu pautado pelo canto de um pintassilgo perdido na rudeza da estação. Estaria ele a procurar alguém, lutando arduamente contra as vicissitudes de um Outono que tonificava o encanto da lenta e voluptuosa queda de uma folhinha castanha?

Quem gostava de reunir essas folhas era o Sr. Hugo que assim se entretinha até à chegada da sua interlocutora. Juntava as folhas secas que conjugadas formavam um todo, uma base bem sólida. Parecia preparar mais uma transposição de uma adversidade, tal como o velhinho burro que um dia via a luz do sol que lhe haviam negado. Quantas coisas já tinham sido negadas àquela alma e, mesmo assim, generosamente postava-se ali para alicerçar uma expectativa.

Entretanto, Mariana chegava com olhos carregados da mais extrema curiosidade. Via o seu amigo lá longe, compenetrado com as folhinhas e pensava na hipótese referida pelo seu pai. Especulava sobre a razão pela qual estaria ele a lançar aquelas folhas. Era um ritual idêntico ao das cartas, aquele que praticava sistematicamente com a esperança esmorecida na revelação da última carta.

- São belas estas folhas, não são?

- Cumpriram o seu papel e agora enlevam-se com a harmonia da natureza e partem.

- Por que razão as reúne, Sr. Hugo?

- Vão partir, mas não vão sós. A solidão dói e não tem razão de ser.

- Por vezes é bom estarmos sós. É importante conhecermo-nos melhor para compreendermos os outros.

- É preferível reconhecermo-nos no sorriso das pessoas que respiram o nosso ar.

- Mas nem sempre isso é possível…

- Tudo depende da forma como reagimos ao pulsar da vida que nos envolve. Há momentos em que temos as asas, mas não sabemos voar.

- Temos medo de cair lá do alto e ferir os sonhos mais desejados.

- Até Ícaro foi feliz. No fundo, procurou a felicidade no desconhecido e conheceu-a. Isso é que importa de facto.

- Mas sou feliz sem voar. Pelo menos por agora.

- Somos felizes quando sonhamos e eu também sonhava…

- Então o Sr. Hugo tentou voar?

- Voo e voarei porque o céu e as estrelas são nossos.

- Então e voou quando regressou de Trás-os-Montes?

- Sim, como te dizia vim em socorro de um amigo. Esse amigo vivia no desespero completo. Tudo o que sonhara parecia esmorecer-se e as asas que o levavam bem alto queriam derreter antevendo uma queda abismal. Ninguém queria acreditar na sobriedade do meu regresso.

- Estavam a ser injustos consigo, aquando da sua partida.

- Não se tratava de justiça ou injustiça. Tudo se resumia à inocente convicção de uma história mal contada, na qual todos acreditavam veementemente.

- Então e o que se passava com esse amigo?

- Esse meu grande amigo sentia-se arrepeso de ter quebrado a grande amizade que nos unia.

- Arrepeso? O que é isso?

- Desculpa, Mariana! Recordo com saudade alguns vocábulos que aprendi atrás daqueles belos montes. Arrepeso significa pura e simplesmente arrependimento. Penso eu que é o “arre” do povo ao peso da consciência.

- Como eu tenho aprendido consigo, Sr. Hugo?

- Só aprenderá se nunca se sentir arrepesa com nada que tenha feito ou possa vir a fazer!

- Que quer dizer com isso, Sr. Hugo?

- Quero dizer-te que independentemente de todos os receios nada deves temer. É importante sermos a nós a conduzir o destino em vez de este condicionar todas as nossas mais belas emoções.

- Foi isso que disse ao seu amigo?

- Não precisamos de dizê-lo. É através dos gestos, da conjuntura das nossas acções que constituímos o nosso carácter. Nós somos aquilo que fazemos de facto e nunca o que dizemos. Não vale a pena parecer para não ser. Foi assim que ajudei o meu amigo. Ele estava convicto, tal como o meu amor, que o seu destino lhe tinha pregado uma partida. A sua mulher estava doente, muito doente e ele considerava-se responsável por tudo aquilo. Dizia inclusive que, após o que lhe sucedera, não deveria ter procurado os braços de ninguém.

- Mas porquê?

- Ele acreditava que estava destinado a expandir a infelicidade para quem tanto amava. Eu perguntava-lhe quem é que estaria louco na realidade. Insistia com ele que esse marasmo não resolvia nada.

- Já estou a ver, Sr. Hugo. Contou-lhe a história do burro.

- Não propriamente, levei-o àquele poço para o qual me precipitei e pedi-lhe que descesse por momentos. Ele assim o fez e eu abandonei o local por umas horas.

- Então e ele não reagiu?

- Sim, Mariana. Era precisamente essa reacção que eu queria sentir. Eram os actos promovidos pelo desespero do abandono e da solidão que eu procurei despoletar no meu amigo.

- Valeu a pena o gesto.

- Sim, ele concluiu que o seu destino não era ficar naquele poço. Constatou que tudo o que aconteceu foi causado por uma atitude alheia que provocou aquela situação. Se ele nada fizesse para mudar, continuaria ainda hoje naquele local, lamentando-se da desgraça do seu fado. Mas não, partiu para a luta, mais determinado que nunca e ousou desafiar o destino traçado.

- Foi o meu pai, Sr. Hugo. Foi o meu pai que agarrou a vida com as duas mãos e reconstruiu as asas à minha mãe, para juntos voarem na desmedida felicidade que me transmitiram e que continuam a transmitir dia-a-dia.

- É verdade, Mariana! O teu pai lutou muito por ti e pela tua mãe e sei que nunca esqueceu o seu amigo. Pensa que estou louco. Senti-o durante a fugacidade do meu reencontro com ele, quando te deixei o bilhete. Fez de conta que não me reconheceu, mas não foi por mal.

- Ele está a ser injusto consigo.

- Não, Mariana, não está. Depois compreenderás!

- Tenho que ir. Até amanhã, Sr. Hugo!

Mariana regressou a casa chorando copiosamente. Sorrindo, ficara o velho Hugo a reunir as folhas secas do seu jardim.

Ao jantar o ensurdecedor silêncio de Mariana despertou a curiosidade da sua mãe.

- Que se passa contigo, filha?

- Nada, mãe. Estou a pensar na conversa de hoje à tarde.

- Lá vens tu com mais conversas, Mariana. – interrompeu o pai.

- Tens razão, pai. Conversas para quê? De que servem as palavras, quando estas não personificam os actos?

- Que queres dizer com isso, Mariana?

- Não vale a pena dizer “Obrigado, Hugo!”. É preferível dar-lhe um abraço de profundo reconhecimento por tudo aquilo que ele fez por ti. Tu reconheceste-o, quando ele veio cá e ficaste indiferente ante sua presença.

- Mariana, as coisas não são tão simples quanto tu pensas.

- Não estaremos nós a complicar tudo, pai? O Sr. Hugo sabe bem o que diz. Parece-me ser uma pessoa perfeitamente equilibrada e bem sabedora daquilo que diz.

- Então mudou muito. Ele nem sempre foi assim. Sabes, Mariana? O Hugo foi sempre o meu melhor amigo e já me ajudou muito.

- Ajudou-nos a todos, não foi pai?

- Então conheces a história. – respondeu Joaquim visivelmente emocionado. Estava completamente perdido com a doença da tua mãe e receava a perda. Ele fez-me ver a vida e apresentou-me o verbo perseverar. Mas quando tudo melhorou comigo procurei-o de novo para tentar retribuir o seu gesto pleno de amizade. Encontrei-o perdido no mundo, como se tivesse esgotado todo o optimismo nos outros, perdendo ele o seu amor-próprio. Tornara-se verdadeiramente descomedido nas palavras que o conduziram para o isolamento, mas agora bem mais vincado.

- Que lhe terá sucedido, pai?

- Nunca o soube explicar. Nem mesmo ao seu parceiro de tantas lutas. Procurei fazê-lo reviver cada um dos gestos que tão bem me ensinara, mas só obtinha como resposta a pedrada, o insulto ou a crua indiferença. Voltei a recear o regresso do infortúnio para connosco. Encarava-o como algo irreversível que, mais tarde ou mais cedo, voltaria para ocupar a fundamentação lógica do destino. Cogitava na hipótese de que eu seria o próximo a sofrer as consequências da ironia do destino. Sentia-me incapaz de ajudar um amigo que não reconhecia as minhas expressões e não aceitava a minha mão para o ajudar.

- Então quer dizer que ele não o reconheceu quando veio trazer-lhe a carta.

- Confesso que assim o pensei.

- Não, pai! A primeira coisa que ele me disse foi que te tinha entregue a carta.

- Então fez de conta que não me conheceu, como fazia antigamente.

- Não terá ele hesitado também com a tua hesitação? – inquiriu Mariana.

- É bem possível que sim, filha! Mas dizes-me que ele está bem?

- Sim, pai. Parece-me ser um homem que acima de tudo ama a vida.

- É estranho depois de tudo o que aconteceu…

- Bem, vamos dormir. A conversa já vai longa. – interveio a mãe, parecendo querer colocar um ponto final àquela história.

- Mas o que aconteceu, pai?

- Ele contar-te-á, filha!

A tarde chegara ao banco do jardim e finalmente o Sr. Zé dava a Hugo um exemplo superior na arte de bem jogar às cartas.

- Bem dizia que ia ganhar o jogo!

- Mas das palavras aos actos ainda vai uma distância muito grande e foi preciso lutar para levarmos de vencida esta verdadeira batalha!

- Sim, mas valeu a pena o esforço!

- Então e tu? Também te esforças por aquilo que queres?

- Sempre, Sr. Zé! Não gosto de baixar os braços. O meu pai diz-me que o grande homem é aquele que, caia as vezes que cair, tem sempre a coragem em querer ser o primeiro a levantar-se.

- Muito bem, rapaz. Então e na escola também és assim?

- Esforço-me por isso! Estou até a escrever uma peça de teatro a Língua Portuguesa para subir a nota.

- Parece-me muito interessante! Como se chama a peça? Deixa-me adivinhar: Uma bela tarde com os velhos do jardim.

- Não, Sr. Zé. Ainda não tem título, mas aceitam-se propostas!

- Oh, meu bom rapaz! A minha vida contada em três actos era um sucesso.

- Ora então conte lá! – retorquiu Hugo com um sorriso.

- Bem, se assim fosse terias que avisar a tua mãe do teu atraso considerável.

- Já lhe disse que ela está habituada a isso, Sr. Zé. E você não tem ninguém à sua espera?

Mariana aguardava em casa pela hora do seu reencontro com o Sr. Hugo. Marcaram-lhe muito as últimas revelações, principalmente aquela lição de vida em que devemos ser nós a pugnar pela prosperidade de um destino. Lembrava-se do seu Pedro e temia agora que este tivesse procurado outro destino que não passasse pela sua existência.

Porém estava enganada. Pedro aguardava heroicamente por um sinal vindo da sua Mariana. É verdade que a sentia muito mais longe, mas, no que concerne ao amor, a cartilha de Platão permite tais distâncias pois estas garantem a proeminência de um sentimento puro.

Pedro optava pelos passeios no jardim. Contemplava o mar e inspirava-se na sua ninfa Mariana para exaltar todo o seu amor. Por vezes, via-a de longe para saber como ela estava e cativava-o aquele leve ar sonhador de Mariana que o conduzia para a poesia. Assim decidiu poetizar a sua compreensão pela ausência do seu amor:

Porto, 18 de Novembro de 1953

O destino determina o curso das águas

Mas não te envolvas em demasia

Não caias no goto das mágoas

Deixa-te enlevar pela fantasia.

Porém, não corras perdida

Atrás da loucura da alma

Esta julgar-te-á esquecida

Na razão que te acalma!

Eu aguardo vivendo em ti

Pela corrente que trará o teu amor

Pela luz que não esqueci

Da alma que à minha vida dá a cor!

Um beijo pleno de Amor

Pedro

Mesmo antes de sair de casa, leu a poesia e os seus olhos brilhavam com os versos que devoravam a sua alma.

Estava, no entanto, decidida a ajudar o Sr. Hugo, esclarecendo todas as situações dúbias que foram surgindo.

- Bom dia, Sr. Hugo!

- Olá, Mariana! Cheguei mais tarde por estive a acabar de escrever.

- A escrever o quê? Uma carta para alguém?

- Não, Mariana. Ando já há algum tempo a escrever uma peça de teatro?

- Ah! Muito bem! Vai contar a história da sua vida em três actos.

- Isso é querer saber demais!

- Não tenho feito outra coisa, não é Sr. Hugo?

- Não Mariana, não penses assim. Algo me faz estar aqui a conversar contigo e eu gosto de conversar contigo.

- Eu também, Sr. Hugo! Então o que se passou depois de ter ajudado o meu pai?

- Bem, agora chega o pior e o melhor da minha história. Depois de ter ajudado o teu pai, pressentia que algo não estava bem. Já tinha chegado há dois dias e nem sequer ouvia falar da Cristina.

- Mas o que aconteceu a ela?

- Cristina fugira de casa e não dera mais notícias. Sentia-me culpado pelo que acontecera. Devia ter ficado até ela chegar à conclusão que as profecias do povo eram frívolas e que seria junto de mim que a sua felicidade iria resignar as marcas do destino. Nunca pensei que tal fosse acontecer. Diziam que ela teria ido saber de mim e que eu fugira com ela. Aquela “reencarnação do demo” roubara o seu corpo e a alma e fizera-lhe muito mal. O teu pai bem que me quis ajudar, mas era incapaz de lhe perdoar o facto de ele ter omitido durante tanto tempo o que sucedera ao meu amor. Era ele que, imitando a caligrafia da Cristina, respondia às minhas cartas e alimentava um amor fictício. Compreendo agora que o teu pai pugnara pelo meu bem, mas protelara a dor que surgiu assim fria e atroz, arrastando-me para a loucura. Ele procurava-me todos os dias, mas eu estava desesperado e era violento para quem se ousasse aproximar de mim. Só à minha mãe era permitida a veleidade de me beijar e conversar por momentos. Ela desesperava com a minha frieza e chorava com as lamentações dos seus monólogos. O povo quis e conseguiu enlouquecer-me de verdade.

- Então, Sr. Hugo! Não chore. O melhor ainda está para vir, não é?

- É verdade, Mariana! Mas nós não devemos desperdiçar as oportunidades que a vida nos oferece. Pensa nisso!

- Porque é que me diz isso, Sr. Hugo?

- Com certeza tem alguém que a procura e tu foges para aqui.

- Mas eu não estou a fugir de ninguém, Sr. Hugo!

- Pois, a Cristina também pensava que não estava a fugir de mim e acabou por se desencontrar. Procurava-a todos os dias na Fonte dos Baralhos e continuava a viver naquele mundo de alucinada verosimilhança, no qual imaginava os diálogos que tinha com ela. Insultava Platão pelo erro do paradigma do seu amor. Constatava que não tinha valido a pena, que havia sido soterrado pela pá do destino. Queria que nada daquilo tivesse acontecido. Queria que aqueles tempos de alegria, do trabalho duro de sol a sol voltassem depressa. Queria poder conversar e suscitar sorrisos nos velhos do jardim. Queria poder jogar às cartas com o teu pai e ganhar. Queria dissuadir aquela gente dos medos incongruentes. Os teus pais procuraram-na incessantemente. Escreviam para todo o lado. Chegaram mesmo a ir a Lisboa, mas nada nem ninguém era capaz de encontrar o meu amor. Até que um dia, no regresso da Fonte dos Baralhos, ouvi uma voz doce que só poderia ser fruto da minha alucinação constante. Vinha do poço. Era a Cristina que sorria para mim, dizendo “É a tua vez”. Aquela lufada de sons palpitantes confundia-me. Não queria acreditar que agora era ela que esperava por mim naquele local, ansiando o meu olhar e o acolhimento dos meus braços para se deleitar no encanto do amor. Entretanto decidimos fugir os dois e mais tarde demos notícias às nossas famílias.

- Não sei o que lhe hei-de dizer, Sr. Hugo!

- Não digas nada, Mariana. Quero que saibas que és a primeira pessoa a conhecer a verdadeira história. Toda a gente pensa que continuo a ser um louco, um doido varrido, mas sou a pessoa mais feliz do mundo porque amo a mulher que tanto procurei e que preenche a minha vida de felicidade plena. Peço-te que venhas amanhã. Quero dar-te uma coisa.

- Cá estarei, Sr. Hugo!

Mariana chegara a casa feliz pelo seu amigo e também orgulhosa dos seus pais. As suas intenções eram realmente as melhores relativamente ao D. Quixote do Marquês. Ela estava ansiosa por contar que afinal o amor reuniu aqueles dois corações que tanto sofriam e que, no fundo, os seus pais também contribuíram para os unir. Tinha conhecimento do desfecho da história e relacionava-o agora com a sua.

Todavia, ainda faltava a tal dádiva prometida pelo Sr. Hugo para que a certeza da sua decisão em não condicionar o seu destino com as condições designadas por aquele velho baralho fosse inequívoca. Ela pressentia Pedro por perto. Aliás, ele esteve sempre implícito nas palavras do Sr. Hugo. Parecia mesmo que se haviam conhecido algures, tal era a semelhança da situação vivida. Essa semelhança inquietava o pensamento de Mariana e conduzia-a mais uma vez para o cariz extraordinário e ilógico das coisas da vida.

Sentia que a perseverança evidenciada por Pedro era agora também correspondida por ela e que todos os seus receios cessariam com a sua convicção.

Quando chegaram, os pais de Mariana foram de imediato saudados com um enorme sorriso que já há algum tempo não era revelado.

- Que belo sorriso, filha! – constatou emocionada a mãe de Mariana.

- Vocês moldaram-no com a força de viver. Estou muito orgulhosa de vocês! Quero agradecer cada minuto que dispuseram para fazer de mim a pessoa que sou neste momento. Estou lisonjeada com a generosidade do vosso amor. Eu também quero amar assim!

- Então conta-me lá a razão de tão emocionadas palavras? – interveio Joaquim.

- Sabes, pai! O teu amigo Hugo reencontrou Cristina e são agora felizes como vós.

- Eles estão juntos?

- É verdade, pai! Foi este o desenlace de tantas contradições entre vós e o Sr. Hugo. Vocês também o ajudaram a ser feliz com a Cristina.

- Estou surpreendido, filha!

- Vá, pai não quero que fiques arrepeso com o que fizeste pelo teu amigo Hugo.

- Que dizes?

- Arrepeso significa arrependido, pai! Não estejam arrependidos de terem escrito tantas epístolas fictícias a Hugo. Estas alimentaram a esperança e a certeza de que um dia o destino os uniria.

- Ficamos felizes por saber que afinal o Hugo voltou a ser quem era.

- O D. Quixote do Marquês concretizou o seu sonho e ajudou a realizar o vosso também.

- Como o mundo é pequeno, filha! Quem diria que um dia viesse a saber por ti tais revelações.

- O mundo não pára de nos surpreender.

- Então e o Pedro? Já conhece esta história?

- Que eu saiba não, mas quero contá-la até ao mais ínfimo pormenor. Vou partilhar com ele a beleza de todas estas palavras e viver a vida num permanente sorriso.

- É bom ver-te assim, minha querida filha. Andávamos muito preocupados contigo. Quando é que vais procurar o Pedro?

- Assim que o Sr. Hugo me dê uma última coisa. Amanhã dir-vos-ei o que é. Não vejo a hora de saber o que o meu amigo tem para me dar.

Os comparsas do Sr. Zé despediram-se da mesa da sueca, resignados com a esmagadora sua vitória.

- Então já vais embora, pá?

- Hoje há jogo da Liga dos Campeões. Quero chegar cedo a casa.

- Então e tu Hugo? Já me ajudaste muito hoje, mesmo não tendo consciência disso. Não vais ver o Porto?

- Não, agora preciso que você me ajude também. Conte lá essa tal peça em três actos, nem que seja resumida para eu escrever a minha.

- Não achas que já chega de emoções para um só dia?

- Sou novo e aguento bem com essas coisas.

- Eu também era bastante novo e já não suportava com a constante inconstância do meu amor. Já nem sequer conseguia dormir para poder sonhar com ela e ser feliz nesses sonhos.

- Como é que ela se chamava, Sr. Zé?

- Isso não interessa. Tu hás-de imaginar um nome bonito para cada uma das personagens da tua peça.

- Ela afastara-se cada vez mais de mim. Já nem as palavras das cartas que me enviava sustinham a desesperança do meu amor por ela. Às vezes desconfiava que nem sequer era ela que as escrevia. Estava sempre naquele jardim a falar com os velhos caquécticos, tal como me aturas agora aqui.

- Vá, Sr. Zé! Eu não estou a aturá-lo. Se eu fiquei aqui é porque estou a aprender muito consigo. Ande lá, prossiga com a famigerada peça da sua vida!

- Vais ter que pagar direitos de autor!

- Depois de tudo o que fiz por si, você ainda exige alvíssaras?

- Começou a conversar muito com um velho louco. Chamavam-lhe o D. Quixote daqui! Ela ia todos os dias ter com ele e falavam durante horas. Reconfortava-me a causa nobre do seu gesto, mas preocupavam-me as suas expressões quando regressava a casa. Essas expressões não tinham nada a ver com as palavras das suas cartas.

Porto, 17 de Novembro de 1953

Olá, Pedro! Sabes que tenho sempre uma vontade imensa em responder-te, mas como sabes os estudos e o voluntariado não me deixam ter tempo para quem eu mais quero na vida e tu sabes que és tu. Vivo tão feliz por saber da tua presença nos meus sonhos.

Eu sei que esperarás por mim e que compreendes as razões da minha ausência.

Um beijo pleno de Amor

Mariana

- Então era por isso que ela se afastara de si naquele momento.

- Sim, dedicava a sua vida a auxiliar os mais pobres e a estudar para um dia ser alguém como o seu pai e a sua mãe.

- O que fazia o pai dela?

- O pai era professor e a mãe era pintora. Tinha quadros maravilhosos. Pintava sempre inspirada na emoção de uma vida que fora em tempos idos bastante difícil.

- Então mas o que é que impossibilitava essa paixão?

- Ela gostava daquelas coisas da sina, dos ciganos, das bolas de cristal e da cartomancia. Via nas cartas o que não queria viver.

- Então e acreditava nisso, ignorando o seu amor por ela?

- Ela não ignorava, Hugo! Ela via que o destino não nos queria unir. Eu sabia que ela me queria, mas os naipes não batiam certo. Assim como as respostas a cartas que eu nunca havia escrito. A última carta que lhe escrevi foi em guisa de um poema e quando rimava o meu coração sofria. Nesse mesmo dia, soube que teria que partir para a Índia e fui vê-la ao jardim. Lá estava ela neste jardim a conversar com o D. Quixote que lhe dera uma carta. Até parece que ainda estou a vê-la. Era um valete de copas humedecido pelo tempo, que o velho retirara de um pequeno envelope que dizia Poço da Fonte. Só mais tarde compreendi a serventia e a razão de ser daquela carta.

- Já em Goa recebi a resposta a uma carta que não tinha escrito.

Porto, 29 de Novembro de 1953

Olá, meu Amor. Adorei a tua carta. Sei que estás em Bragança a ajudar o teu irmão e que pensas em mim todos os dias.

Pois eu também penso em ti e agora sei realmente o que quero. Tenho uma história fantástica para te contar. No voluntariado conheci um senhor que me fez ver que, quando nós queremos, somos capazes de mudar o destino.

Volta depressa para te abraçar. Até uma velha carta desaparecida do meu pai apareceu. Era a carta que faltava no baralho e agora vejo-te todos os dias disposto na premonição da minha felicidade. É a teu lado que vou ser feliz!

Um beijo pleno de Amor!

Mariana

- Ao ler aquela carta, gerou-se em mim uma profunda revolta encharcada pelas lágrimas e pelo suor do meu novo trabalho. Fiquei a saber duas coisas. A primeira é que o meu amor não recebeu a minha carta de despedida e não sabia que tinha vindo trabalhar para a Índia. A segunda é que alguém, não suportando o sofrimento dela inventava estas cartas para atenuar a dor da minha ausência.

- Que estranho, Sr. Zé! Parece que já vivi essa história algures.

- Pois… e então surge o segundo acto da peça. Mas conto amanhã. É que já está a querer anoitecer e como há bola o trânsito fica medonho.

- Não se preocupe que o jogo não é cá. Ficamos mais uma horinha. Às sete e meia vamos embora. Já se viu alguma peça acabar a meio?

- A minha vida é que parecia ter terminado ali. Estava tão distante de Mariana…

- Mariana?!

- Sim, Mariana. Não gostas do nome?

- Bem pelo contrário! Se tiver uma filha chamar-lhe-ei Mariana. Está decidido!

- Sentia-me impotente para resolver fosse o que fosse. Incomodava-me solenemente o facto de ela estar a ser enganada. Só os pais dela que tanto queriam o seu bem podiam omitir a minha ausência. Mais ninguém me conhecia por ali.

- Então e o que sucedeu?

- Calma rapaz! A peça não é assim tão simples. Fiquei mais seis meses em Goa e deixei de receber cartas da Mariana. Ela havia descoberto que os seus pais alimentavam a esperança dela com palavras que convergiam no valete de copas que aparecia todas as noites. Contudo ela descobrira a verdade e quis saber onde estava para me escrever e assim fez.

Porto, 3 de Maio de 1954

Meu querido amor,

Sei agora onde estás verdadeiramente. Peço-te desculpa por não te ter dado a devida atenção antes de partires para aí.

Estava convencida que os nossos sonhos eram suficientes para satisfazer a magia do nosso amor.

Não estou magoada com os meus pais. Eles só querem o meu melhor. Já sofreram com as ironias do destino e não queriam ver-me enlouquecer como uma mulher de uma história que te irei contar.

Por ora, quero que saibas que tudo vai acabar bem e que esperarei por ti o tempo que for preciso, pois estou certa de que ambos vamos poder voar bem alto e dizer a todos que nada nem ninguém impedirá a força do nosso amor.

Vou continuar a estudar, para um dia podermos casar e cultivar a alegria no resto da nossa vida.

Um beijo pleno de Amor

Mariana

- Estava fascinado com as palavras do meu amor e a minha vontade era regressar o mais rapidamente possível, para encontrar os seus braços. Mas não foi assim tão fácil. Era preciso juntar muito dinheiro para voltar e trabalhava dia e noite, sempre com ela no meu pensamento.

Lá em Goa havia muito que fazer. Tínhamos imensas igrejas que precisavam de manutenção. As pessoas eram muito simpáticas e tinham uma cultura muito própria.

Sonhava com ela e imaginava-me em Goa a viver numa casa enorme, onde a minha rainha podia acolher as gentes que precisariam de um ombro amigo.

Mas imediatamente o meu sonho tornou-se num enorme pesadelo.

- Então porquê?

- Deixei de receber novas de Mariana e receava que algo de errado se estivesse a passar. Queria muito estar ao lado dela, logo agora que se dispunha a amar-me. Sinceramente, eu já não acreditava que os olhos da minha vida se dignassem a querer os meus. Estava iludido com a platónica filosofia de vida, em que a vertente física nada contava. Sentia o conforto de sofrer pelo amor. A melancolia agradava-me. Era um estado de espírito próprio de quem ama e congratulava-me com o facto de eu saber que eu era capaz de amar assim tanto. Satisfaziam-me as recordações da melodia da sua voz, as sensações suscitadas pela sua fragrância que encontrava nas flores e nos campos. Era permanentemente alimentado pelas vivências preconizadas com as recordações do meu amor. Era simplesmente feliz só por tê-la no meu pensamento. Lia todas as suas cartas antes de dormir e esperava encontrá-la nos sonhos como sempre. Contudo, naquele pequenino quarto que tão bem acolhia as minhas emoções tive um sonho horrível…

- Um pesadelo, quer você dizer.

- Caminhava normalmente para um local estranho. Era uma fonte enorme onde as pessoas rezavam e clamavam pelos entes mais queridos que tinham desaparecido…

- Uma fonte?!

- Sim, Hugo! Uma fonte que baralhou o meu sossego. Era impressionante o desespero daquelas vozes mudas que gritavam histéricas por alguém. Eram pessoas que não paravam de correr de um lado para o outro e que deitavam as mãos à cabeça. Atiravam-se para o tanque e levavam fotografias. Outros levavam lupas. Pareciam procurar alguma coisa e desesperavam com a busca infrutífera. Alguns ainda tinham tempo para jogar às cartas, mas nunca concluíam os jogos sorrindo expansivamente e dizendo: “Falta a carta! Estás desgraçado!”.

- Que estranho! Esses também jogavam às cartas?

- Quem jogava às cartas era o pai de Mariana que chorava como um perdido. A mãe pintava uma tela toda preta. Era um cenário desolador. Eu corria em direcção a eles, mas nunca os alcançava. Eram transparentes como a água que nascia e eu passava pelos seus corpos, sem pressentir quaisquer reacções. Entretanto, começaram a correr na minha direcção. A mãe da Mariana dava-me a tela e eu pintava o retrato do meu amor, mas este plasmava-se desfigurado. A imagem não era a de Mariana. O pai dela ajoelhava-se, suplicando algo. De súbito, começava a chorar também e dava comigo num grande buraco.

- Não seria um poço, Sr. Zé?

- Sim, era isso! Era um enorme poço! E lá em cima estava a minha Mariana que falava uma língua estranha. Parecia estar a admoestar-me com gestos incisivos e ameaçadores. Via um pintassilgo que falava para mim: “Estrebucha, burro! Reage, Pedro! Em breve estarás cá em cima!”. Quando finalmente vi a luz do dia, alcancei os braços do meu amor, mas ela atirava uma carta para o fundo do poço, arregalando o verde dos seus olhos e o pintassilgo dizia: “Vai buscá-lo! Esse valete de copas é importante. Está no meio dessas folhas secas.” Caía novamente no poço, alcançava a carta mas esta desfazia-se tal era a humidade da mesma. Isto repetiu-se vezes sem conta, até que o pintassilgo me deu as suas asas e voei na direcção do sol, caindo no meio do jardim…

- Como se fosse Ícaro! Mas que pesadelo!

- Desesperava nessa altura. Acordei sobressaltado à noite, chorando como um bebé que sentia uma dor imensa e não conseguia transmiti-la a ninguém.

- Então esse sonho foi um sinal.

- Foi mais do que um sinal. Foi a confirmação de que algo de muito mau se passaria com o meu amor. Nada surge por acaso e então nestas questões do amor cada pormenor assume uma alta significância. Quando amamos alguém, sentimos os seus impulsos como se dos nossos se tratassem. É como se vivesses outra vida transformando-a na própria vida e a tua teria um papel de somenos importância.

- Eis Platão no seu melhor.

- Não, Hugo! Um dia, quando amares alguém agirás naturalmente e compreenderás Platão, bem como todos os seus seguidores. Sentes uma falta imensa do toque, do cheiro, da simples presença da pessoas que amas. No entanto, a confirmação de a teres presente em todos os teus sentidos eleva-te grandiosamente e encontras o seu amor em todas as cores, nas melodias, na abstracção das palavras, no simples e sincero sorriso de um bebé ou na nostálgica expressão de um velho como eu.

- Ainda não é assim tão velho, Sr. Zé!

- Aquela longa viagem de barco como que me retirou muitos anos de vida. Foram dois meses sem sono. Vivia amedrontado com as piores premonições. Olhava o mar e via-a chamando por mim, reivindicado a minha presença e julgando a minha ausência. Chorava desesperado e perguntava todos os dias se ainda faltava muito. Tinha a minha Penélope bem longe e eu era o valente marinheiro Grego que rezava aos deuses para me favorecer a rota de regresso. Chegava de tormentas pelos mares um dia já navegados e desejava como ninguém avistar a ocidental praia lusitana. Queria descobrir a felicidade e expandir o amor de alguém que cuidava ainda muito distante. As valentes vagas tocadas ao virtuoso vento, pressagiavam o meu pungente destino. As cartas impunham a sua ordem e as previsões afinal confirmavam-se. Ela não estava errada quanto à incompatibilidade conjecturada naquele velho baralho, que mais parecia o do Restelo que anunciava a desgraça na minha senda por aqueles vastos oceanos.

- E dizia você que eu não iria aprender nada aqui. Como se enganou…

- Vá não exageres!

- Não estou a exagerar, Sr. Zé! Estou até a subestimar a riqueza destes preciosos minutos em que aqui permaneci. E nem sempre estive cá.

- Eu sei, Hugo! Mas queres ou não ouvir o terceiro acto?

- É claro que sim.

- Durante a viagem o mar era o meu confidente. Era o único que me ouvia e que me acalmava com a sua imensidão. Perdia-me na linha do horizonte e indagava sobre qual seria o cenário presente para além daquilo que humanamente podia ver. O mar dizia-me que eu não poderia ceder à ilusão de óptica, que para além daquela linha ainda estaria outro mar, o qual me iria acompanhar no desespero do meu desconhecimento em relação ao que se passava com o meu amor. Achavam-me uma pessoa estranha, que era dada como um louco perdido que derivava por deambulações alucinantes.

- Também já fui dado como louco, doido varrido e aqui estou mais sóbrio do que nunca. A minha mãe diz-me imensas vezes que sonho acordado e que um dia ainda vou parar a um hospício. E eu respondo-lhe sempre que se for louco serei um doido feliz.

- O coração dela já palpita com o teu atraso!

- Não se preocupe, Sr. Zé. Ela já realmente habituada às minhas demoras.

- Não o devias fazer. O coração sofre!

- Tal como o seu, naquele barco que nunca mais chegava a bom porto.

- Sem dúvida, rapaz! Atracava em todos os sítios, mas nenhum era o que eu ansiava. Via o sol deitar-se e positivamente acreditava que estava ali, por trás do sol poente, que estava ali a conclusão da minha viagem. Deitara por terra aquela noção de que o caminho inverso suscita a sensação de que é mais rápido. Pelo contrário, estava a ter um vivo diálogo com o limiar da eternidade. Sempre que cerrava os olhos ouvia o pintassilgo: “Reage, burro! Em breve sairás do poço”. Mas este era bem fundo do que o dos sonhos e não via a Mariana a acicatar os meus movimentos. Davam-me comprimidos por causa das febres altas e delirava com os sonhos. Ouvia vozes por todo o lado. Sentia a cabeça a rodar incessantemente. Desesperava com o arrependimento de a ter abandonado naquele momento. No fundo, ela sabia que eu estava presente. As minhas sinceras palavras garantiam-lhe a segurança e afastavam o seu receio em perder-me. Ela sentia a minha presença quando a via lá no voluntariado, reagindo encantada ante as revelações daquele velho do jardim. Eu sabia que ela aguardava apenas pelo melhor momento para me abraçar e lamentava-me com o facto de me ter precipitado. Deveria ter ido falar com ela. Teria sido mais esclarecedor.

- Não precisa de chorar agora, Sr. Zé! Tudo já passou.

- Mas ainda dói muito esse sofrimento. Quantas vezes ainda acordo no meio daquele barco colossal e me revejo a conversar com o mar, perguntando por Mariana…

- Mas entretanto chegou cá.

- Sim, após intermináveis minutos de dias que mais pareciam décadas e de meses seculares estava de volta ao meu destino. Ainda estou a ver os meus pais a expressar uma profunda estupefacção ao ver-me assim tão magro e pálido. Não conseguiam esconder as lágrimas do desalento ante a minha postura endémica. Pensavam no que me terá sucedido na terra dos pavões. Nem imaginavam sequer que as verdadeiras razões do meu abatimento se centravam cá. Os meus olhos fatigados não se cansavam de procurar os espelhos da sua alma. Acreditava que o meu amor estaria já à minha espera. Contudo não havia sinais da sua presença e eu mergulhava de novo na mais profunda obra do desalento. Estava no poço e lá permanecia sem conseguir reagir à força da adversidade. Ciente de que estava ali imerecidamente, recordava a cidade que me acolhera conjuntamente com a esperança de um regresso triunfante.

- E não vinha disfarçado de mendigo como Ulisses!

- É verdade, mas a máscara que apresentava era bem mais dissuasora para quem me conhecia tão bem. Como te dizia recordava Goa, para atenuar a dor da ausência de Mariana. A “Goa Dourada” estava linda! Lembrava a magnífica Basílica do Bom-Jesus onde trabalhei com a força de um jovem pronto para viver a vida, pugnando pela felicidade que procurava no verde dos olhos do meu amor. Via o sol nascer na Ásia que não posso esquecer e sonhava com o poente da praia ocidental.

- Por que razão não foi procurar Mariana?

- Tinha medo. Tinha muito medo de enfrentar o cenário criado por aquele pesadelo. Esperava ansiosamente por uma resposta à carta que lhe enviei.

Porto, 2 de Agosto de 1954

Querida Mariana,

Já voltei para ti. Foram longos os meses que obstaram o nosso reencontro, mas agora cá estou pleno de ansiedade para te ver.

Estou um pouco diferente, meu amor. Encontro-me mais magro e frágil. Não foi fácil a mudança de ares e a viagem de regresso parecia não ter fim.

Tinha pesadelos horríveis. Eram pesadelos que ameaçavam gravemente os nossos maiores sonhos. Mas acredito que estás bem e que em breve voltarei a embarcar na tua alma.

Aguardo pela tua resposta, para podermos recuperar aquilo que não vivemos. Sei que também esperas por mim e eu não quero ver-te sofrer com a minha ausência.

Sabes bem que estive sempre presente!

Um beijo pleno de Amor

Pedro

- Então e quando veio essa ansiada resposta?

- Pois é, meu amigo Hugo. Passaram-se dez dias e não obtive correspondência. Imaginei o pior dos cenários no qual ela teria encontrado uma outra pessoa. Um jovem estudante como ela que esteve presente aquando do seu sofrimento.

- Então porque é que não foi logo a casa dela tirar satisfações?

- Pensas que era assim tão fácil no antigamente? Que lhe mandavas um sms e ela vinha a teu encontro?

- Havia um imenso respeito e, por muito que estivesse a sofrer, não poderia permitir-me à veleidade de me intrometer na casa dos pais dela.

- Como o mundo mudou, Sr. Zé!

- Mas o amor é o mesmo e nunca muda! Mas tudo parecia querer mudar no dia em que recebi uma carta. Era do Sr. Joaquim, o pai de Mariana.

Porto, 14 de Agosto de 1954

Pedro,

Saúdo o teu regresso com gratidão. Mas o que tenho para te dizer é a pior das realidades.

Perdi tudo na minha vida. A minha Mariana partiu e não sabemos para onde. Já receamos pela sua vida e estamos desesperados.

Não temos vontade de viver. A Paula não sai da cama. Está fraca e não quer comer.

A nossa última esperança é que tu saibas alguma coisa da nossa filha! Precisamos muito da tua ajuda.

Mal possas vem cá a casa!

Um abraço,

Joaquim

- É inacreditável o que me está a contar, Sr. Zé. Tanta vida para viver, tanto amor para partilhar e o destino não vos unia.

- Perdi o rumo da minha vida. O mundo desabou quando acabei de ler a carta de Joaquim. Os meus piores pressentimentos confirmavam-se. Aquele pesadelo foi um sinal fortíssimo da tragédia que se abateu nas vidas das pessoas que mais amavam Mariana. Tinha que os ajudar. Tínhamos que ser mais fortes do que o vazio da ausência e fazer algo para descobrir o paradeiro do meu amor. Ainda não sei explicar, mas naquele momento senti uma raiva, uma profunda revolta. Não gostava da vida, não gostava do mundo que me envolvia e que era tão injusto com a pureza de um sentimento uno e enguiçado. Fui a correr desesperadamente pela cidade fora, olhando em todas as direcções e vasculhando cada ser que se movia. Era inacreditável o que nos estava a suceder. Agudizava-se o remorso de um dia ter abandonado os olhos que perdera, mas não era tempo para lamúrias. Havia que unir esforços para encontrar o seu paradeiro. Ela não podia estar longe de mim. Não podia estar longe da felicidade que tanto procurávamos. Assim, encontrei os pais de Mariana. Joaquim recebeu-me com mãos trémulas e chorámos como duas crianças perdidas na inocência de uma realidade que ninguém queria acreditar. Paula estava atónita a contemplar uma fotografia da sua filha. O silêncio intenso do momento gritava a revolta das injustiças da vida. A pálida tez de uma mãe que via a sua vida esvair-se, após tantas alegrias, não anunciava quaisquer reacções. Não reagia às minhas palavras encorajadoras que pronunciava desesperado. Éramos três almas perdidas num mundo cruel. Ganhei coragem e disse que deveríamos falar lá no voluntariado para sabermos quem a terá visto pela última vez. O pai contou-me com uma voz vacilante que ela andava felicíssima, pois falara com um velho amigo dele e essa conversa tê-la-ia deixado muito orgulhosa…

- Foi o velho que deu o valete de copas?

- Ah, pois…isso tu já sabes! Ninguém mais viu o D. Quixote. Ele poderia ter algo a dizer em relação a Mariana. A razão mais plausível para o seu desaparecimento seria o desespero de me querer por perto e eu estar tão longe. No dia em que soube do meu verdadeiro paradeiro, enclausurou-se no seu quarto e esteve sem comer durante dias. O seu estado decaíra-se abruptamente e o seu pai receava agora que a Mariana padecia da mesma doença que apoquentara a sua mãe há já algum anos atrás. O pai receava que a desgraça de uma carta perdida na Fonte dos Baralhos voltaria a ser o agoiro desta família que tanto já sofrera.

- Mas a carta fora encontrada. Já não fazia sentido algum esse vaticínio.

- Pois é, meu bom rapaz. Pareces estar bem dentro da peça.

- Gostava que essa fosse também a minha peça, Sr. Zé!

- Já é, Hugo! Tu merece-la, mas tens que a ouvir até ao fim!

- Claro! Digo à minha mãe que estou a fazer um trabalho de Língua Portuguesa.

- E que grande trabalho o teu! Aturar e ajudar um velho a ganhar simples jogo de sueca!

- Não, você é que teve todo o mérito. Eu limitei-me a observá-lo.

- Deste-me sorte, rapaz! Deste-me muita sorte, amigo Hugo!

- Ora essa, Sr. Zé! Eu que é agradeço a sua sapiente paciência de um puto que não faz outra coisa a não ser questioná-lo permanentemente!

- Bem sabes que o acaso não é para aqui chamado e, se o foi, bendito seja. Pois, neste caso, o acaso não fez caso de ser um mero acaso.

- Bem! Com essa, fiquei todo baralhado!

- Pois foram justamente os baralhos da vida que nos trouxeram para aqui e nos fazem permanecer. Mas como te dizia o pai da Mariana receava o regresso do fatal destino dos seus entes mais queridos e, pensava ele, como a mãe escapara à doença vencida, esta ter-se-ia gerado na filha. No entanto, Mariana recuperara o fôlego talvez pela carta que me enviara para Goa. Tinha perdoado os pais por alimentaram dois corações famintos. O pior ter-se-á sucedido durante os meses que derivei no mar. A mãe encontrava-a a falar sozinha, olhando o espelho. À noite, declamava poemas exprimindo uma intensa prosódia e depois chorava no desespero de uma insónia desprovida de sonhos…

- O Sr. Zé sentia o mesmo, quando regressava de Goa!

- És um ouvinte atento! Estou orgulhoso de ti, meu amigo. Foi assim que no dia anterior ao meu regresso, Joaquim e Paula não viram mais a Mariana.

- Então e o que fizeram depois? Desculpe, Sr. Zé! Lá estou eu a fazer perguntas. Pareço um menininho pequenino que não deixa o papá e a mamã contarem a história.

- Agora fizeste-me lembrar o meu filho, quando era mais pequenino!

- Você tem um filho? Como se chama?

- Hugo! Chama-se Hugo!

- Que coincidência!

- Coincidências ou não, o que é facto é que está a ficar tarde e tu não vais saber contar a peça à tua professora!

- Prometo que não o interrompo mais!

- O primeiro local que procurámos foi a famigerada Fonte dos Baralhos, onde o Joaquim perdeu o valete de copas. Íamos lá todos os dias. Era sempre o último local que visitávamos após desanimadoras buscas. O pai enrouquecia a voz de tanto chamar por Mariana. Estávamos cada vez mais magros. Eu não dormia, não sonhava. Chorava apenas e acusava Platão de ter gizado a maior das injustiças, a maior das traições. Não tinha forças para reagir e perdera todos os meus amigos que me chamavam louco por correr a cidade de uma ponta à outra todos os dias. Sinceramente, tinha perdido o gosto pela vida. A mãe da Mariana resolvera comprar uma enorme tela para, dizia ela, produzir a sua última obra. Eu rezava para que esta não coincidisse com a negra cor do quadro que sonhara. Não queria rever aquele cenário perturbante e desolador que anunciara tudo aquilo que estava a viver naquele momento. O medo de perder Mariana para sempre crescia em cada dia que passava. Joaquim via a sua mulher pintar e incentivava-a a continuar. Dizia vezes sem conta que Mariana iria gostar de se ver naquele quadro. Estava particularmente fidedigno aquele quadro em que Mariana usava um vestido azul da cor do céu e do mar, da cor dos meus olhos que cediam ao desalento de mais um dia perdido na dor. Continuava a amá-la como sempre e sabia que ela sentia o mesmo em relação a mim e, fosse qual fosse a sua condição nós olhávamos na mesma direcção. O estado de saúde de Joaquim agravara-se e este já não tinha forças para sair com a esperança de que uma luz surgisse no horizonte que se aproximava com o seu fim. Não saía de casa e era eu que estava incumbido de trazer novas para aqueles dois seres perdidos no oca esperança de um reencontro. Paula continuava a pintar, como se a derradeira pincelada fosse o despertar de um longo sono interrompido com a voz da Mariana. De dia, era o louco que corria a cidade, torturado por visões resultantes da ilusão do momento. Via a bela face de Mariana em todas as transeuntes e ouvia a sua voz por todo o lado. Corria como um doido na direcção da mais exígua suspeita. À noite, contemplava a lua e confiava-lhe todas as minhas palavras de amor para que esta comunicasse a intacta manifestação de carinho para com Mariana. Passaram-se dois meses e, numa manhã de Outubro, Paula chamou-me para ver o quadro que havia pintado. Fiquei maravilhado com a beleza do retrato. Era como se ela estivesse ali, como se houvesse sempre estado, observando pormenorizadamente cada movimento. Nesse dia, Paula contou-me que Mariana gostaria de ter dado um retrato seu ao velho amigo e pediu-me que o fizesse. Levei o quadro comigo e, a partir desse dia, transportava-o a muito custo para o jardim onde Mariana costumava ir conversar com o seu amigo. Apesar da dificuldade, cumpria sempre com o prometido e permanecia no jardim, esperançado com a aparição do velho.

- Ele desapareceu quando deu a carta a Mariana… - interveio Hugo oportunamente.

- E tu já compreendeste por que razão ele não apareceu mais?

- Sim, esta peça e também um pouco minha!

- No entanto, mantinha-me firme com a convicção. Pelo menos tinha a sua imagem a meu lado e olhava-a enquanto esperava. Mais, eu via-a de facto. Conversava com ela, confirmando se a lua lhe tinha transmitido a minha mensagem do dia anterior. As pessoas riam-se com a minha postura, pois ainda não tinham compreendido nas suas vidas tudo aquilo que o amor comporta e significa para quem ama de verdade. Marimbava-me para os comentários e sorria, respondendo aos insultos dos leigos na matéria do amor. Não os censurava. No fundo, eram os infelizes seres que tinham tudo que era o nada. Contudo, houve um comentário laudatório: - É bela essa rapariga, caro jovem!

- É a minha mulher. Trago-a cá para ver as flores de que tanto gosta. Faço questão de a acompanhar, pois não me consigo dissociar da grandiosidade da sua presença e sei que ela gosta da minha companhia neste ritual.

- Faz bem, jovem!

- Pedro, chamo-me Pedro!

- Ah! Pedro. Bonito nome o seu. E a sua mulher?

- Chama-se Mariana.

- Pois eu também vinha cá muitas vezes com o meu marido!

- É um local bem bonito! É fresco no Verão e até nos abriga da chuva no Inverno!

- Então e o seu marido já não a acompanha?

- Não está por cá! Partiu de manhã cedo e ficou de chegar à tardinha para me ajudar a preparar o jantar e até agora nada!

- Não se preocupe, senhora! Ele aparece. Se calhar ficou para aí numa tasca e está entretido a jogar umas cartas.

- Aquilo não é defeito.

- O quê?

- O feitio de chegar sempre atrasado. É um cabeça no ar! Agora deu-lhe para começar a escrever. Depois de velho e calejado nas mãos deu-lhe para escrever.

- Nunca é tarde para se começar! – interrompi.

- Não, para ele até é sempre bastante cedo! Mas também se vai arrepender por não ter chegado a horas.

- Vá, não se zangue!

- Pois tinha uma surpresa para ele e agora vou adiá-la, para quando bem me apetecer!

- Permita-me que lhe diga uma coisa. Nunca faça isso, senhora! Não devemos retardar aquilo que poderá ser irrecuperável para sempre.

- O Pedro tem razão no que diz e eu que o diga! Mas ele merece uma condenação. Não tem, não teve, nem nunca terá emenda.

- Faça-lhe lá a tal surpresa. Quiçá não voltará a chegar tarde.

- A surpresa também não se importa de esperar.

- Acho que está na hora e o meu amor tem que fazer o jantar.

- Vá lá, vá lá! Você bem precisa de comer! Está bem magrinho o senhor. Esteve doente?

- Não, esta doença é crónica. Contraía-a no mar!

- É marinheiro?

- Nunca tinha pensado nisso! Não, mas já viajei muito.

- E que mal lhe fez o mar?

- O mar não me fez mal nenhum, senhora! O meu mal e bem maior!

- Então conte-me lá o seu mal.

- Estou desnutrido pelo desgosto do amor, pela frustração do desencontro, pelo vazio.

- O meu marido também já andou assim bem magrinho, mas o tempo cura tudo e o tempo encarregar-se-á de lhe retribuir.

- Receio que tal não se sucederá! O meu problema é o amor.

- Esse é o problema de todos nós. Quando amamos, queremos sempre mais e, como quis dizer Gil Vicente no seu Auto da Índia, nunca ninguém está bem com a vida que tem.

- Fosse esse simplesmente o meu problema. Eu quero o meu amor, mas não o vejo. Sinto-o, mas não o encontro.

- Arrepia-me a sua dor. Mas não desista. Não deixe que o vasto mar o afogue. Procure sempre vir à superfície. As vagas vão e vêm e nós temos que as transpor.

- Pois eu já estou a boiar há meses e não encontro solo firme onde possa descansar.

- Por vezes, a vida traz essas incertezas. Assim vivi eu durante muito tempo. Não desista para que a esperança subsista.

- E como reagiu a senhora ao incerto da vida?

- Procurei sentir a certeza, para que esta seja a essência da vida. O mundo parece injusto à primeira vista. Contudo, este parece conseguir justificar toda a dor e todo o sofrimento. São lições de vida que podemos considerar descabidas e imerecidas, mas que mais tarde se traduzem nas mais belas razões da nossa felicidade.

- Fez-me bem conversar consigo! Você sabe o que é amor.

- Sei o que é o amor e sei o que é sofrimento. E lembre-se que nunca estamos sós…

- Aquela conversa com a velha do jardim deixou-me incomodado. Se por um lado congratulei-me com o facto de ela me ter compreendido, por outro estranhei a sua frieza e objectividade com que abordou o meu sentimento. Mesmo assim, estava decidido a levar novamente o quadro do meu amor e entregá-lo ao velho, cumprindo assim o que prometera. Custava-me imenso chegar junto dos pais de Mariana e não conseguir esconder a dor e a melancolia inevitáveis. Decidi não contar nada acerca da conversa que mantive com aquela senhora.

- E a senhora apareceu no dia seguinte?

- Não só apareceu, como estava já à minha espera. Mal pousei a tela, não hesitou em perguntar:

- Então está cá de novo, Pedro?

- Quis passear um pouco. Estou bastante cansado e aqui posso descansar em paz.

- Imagino que o seu trabalho seja bastante cansativo.

- Como eu gostava de lhe poder dizer que o meu cansaço advém do labor, mas não é verdade.

- Então qual a razão desse ar abatido e de tanta magreza que chega a meter dó? O que é que o cansa assim tanto?

- A senhora não se importa de ouvir o meu lamento?

- É óbvio que não, meu bom rapaz.

- Calculo que terá estranhado o facto de eu vir aqui com esta pintura.

- Devo confessar que sim. Nunca intervim nesse sentido, pois não queria ferir a sua aparente convicção, na qual fazia crer que a pessoa desse retrato era realmente de carne e osso.

- Para mim, esta pintura representa a minha vida que perdi. Ela significa a razão de cada palpitar do meu coração.

- Isso, chore que faz bem. Acredite em mim, pois também já chorei muito na minha vida.

- Esta bela mulher que aqui vê chama-se Mariana e foi pintada pela mãe, que se encontra num estado de absoluta desintegração do mundo real. Penso que ela ainda não tomou consciência da verdadeira dimensão da sua perda. Está desesperada com o desaparecimento da sua única filha. O seu pai desleixa-se a cada dia que passa, mormente quando chega o crepúsculo e a lua nada tem para dizer. Eu perdi a razão de viver, nem mesmo a consolação do princípio platónico permaneceu. Pelo contrário, desvaneceu-se com a explosão de toda a minha raiva por não ter estado presente quando o meu amor me quis. Nessa altura, estava bem longe. Tinha partido para Goa, justamente no momento em que ela decidira em tornar a nossa paixão num caso mais sério.

- São ironias do destino. Se é que isso lhe possa servir de consolo, posso dizer-lhe que também me sucedeu algo bastante parecido. Era uma jovem demasiadamente calculista e dependente da opinião dos outros. Tinha alguém que me amava muito e que me queria mais do que tudo. Mas como deverá calcular, não era fácil adestrar as mentalidades e impossibilitavam-me de ter o que sempre desejei e, tal como eu fui capaz de conseguir o que tanto sonhara, você também vai ser bem sucedido.

- Pois a esperança quer adormecer nos meus braços. Eu que tanto a procuro e não consigo obter sequer um sinal! Eu sei que ela está viva. Teria pressentido o mais ínfimo sinal de dor, se porventura ela estivesse a sofrer. Mas porque razão não sentirá ela o meu grande sofrimento.

- O Pedro não sabe até que ponto ela poderá ou não sentir a sua presença. Se ela o amava, com certeza que esse estado sublime não se terá apagado. Este poder-se-á manifestar sob diferentes formas. Nunca sabe quais poderão ser as verdadeiras razões da sua ausência. Nunca desconfiou de nada?

- Sabia que ela era bastante supersticiosa e deitava as cartas para prever o futuro. Ela acreditava mesmo que estas determinavam decisivamente a vida de cada um.

- Com o tempo aprendi que essas coisas não passam de meras sugestões de vida, que não devem ser encaradas como dados adquiridos. Aprendi que nós temos a maior parte da responsabilidade para determinar aquilo que constituirá a base da vida. O segredo é pensar que as coisas podem ser sempre melhores, se as deixarmos simplesmente ser.

- Mas é com essa ideia que tenho lutado sempre, durante todos estes dias e não vejo nada.

- Seja paciente, Pedro…

- Mas que situação desesperante, Sr. Zé!

- É verdade, Hugo! Nunca desperdices uma oportunidade seja ela qual for. As consequências desse desperdício poderão ser irreversíveis.

- Hoje já tive um grande exemplo e, como viu, não desaproveitei a fantástica lição de vida que me tem vindo a dar.

- E já vais dar um jeito na sueca, não é?

- Isso é mais complicado. Mas hei-de lá chegar. Estou ansioso por conhecer o desfecho.

- Continuava a optar por nada dizer aos pais da Mariana. Pensava que nem sequer iriam reagir às minhas palavras. Na manhã seguinte, quando cheguei vi a mãe de Mariana a chorar perdidamente. Contava uma noite terrível em que Joaquim saíra desesperado, gritando que já a tinha encontrado e sabia exactamente onde Mariana se escondia. Fui dar com ele na Fonte dos Baralhos completamente desvairado. Parecia um louco a gritar “Estás aí, minha filha! Sai deste local assombrado. Não percas o rumo que a carta te quer dar!”. Procurei tirá-lo dali. Estava envolto de gente cuja inércia permitia a especulação. No entanto, Joaquim parecia não reconhecer-me. Estava completamente perdido o pobre pai cujo coração se encontrava irremediavelmente despedaçado. Quando regressava da Fonte vi um belo pintassilgo que piava ruidosa e incomodativamente…

- Era igual ao do pesadelo?

- Não, era ainda mais bonito. Esvoaçava em torno de um velho poço de pedra como que prevaricando a minha curiosidade para ver o que lá estava. O poço encontrava-se parcialmente tapado com terra. Um arrepio atravessou a minha alma, tal foi a gravidade do que pensei. Corri, hesitei e finalmente decidi cavar a terra, ignorando o repugnante riso de um homem que criticava o meu gesto. Porém, não desisti e o Joaquim, bem mais calmo auxiliava-me na escavação. No fundo do mesmo, estava a razão de toda aquela persistência.

- Por favor não diga o que eu não quero ouvir! – suspirou Hugo.

- Pois, meu amigo Hugo. Não querias desiludir a tua nova história.

- Agora que também faço parte dela não queria que o seu final arrasasse com a minha expectativa, após tantas viagens e tantas deambulações.

- Tens a liberdade de determinar o seu desfecho. É essa a grande vantagem de um escritor. Este pode pintar a desgraça com palavras negras, descrevendo um cenário desolado, desesperado e pleno da mais vincada dor. Ou, por outro lado, criar a mais bela imagem de uma plena felicidade, onde amor exaltará toda a sua mestria, na soberba e infinita beleza que é procurar o amor, descobrir a sua presença, chorar a sua ausência e viver com a imensurável alegria que dois seres expandem quando simplesmente se amam.

- Como eu gostava que o desenlace da sua história fosse idêntico a mais uma grandiosa vitória no seu jogo das cartas. Que aquela carta, a tal que guardou para determinar a viragem na tendência do jogo, possa perpetrar um final feliz. O final que todos nós procuramos no jogo das nossas vidas.

- Como já pudeste constatar, meu amigo Hugo, nem sempre o jogo que detemos nas mãos determina a conquista vitoriosa. Lembra-te de que há sempre mais pessoas que têm também o seu próprio jogo e importa que estas anseiem positivamente por algo semelhante às tuas expectativas. Na vida, tal como num jogo, há que compreender as outras pessoas e devemos permitir que estas possam exprimir as suas vontades. Nunca penses só, considera também que os que te envolvem (as pessoas que te querem muito) podem não demonstrar a eventual fraqueza, mas aguardam um gesto de carinho, uma atenção, uma simples palavra que encaixará hermeticamente num espaço cedido gentilmente, por cada um dos seus corações. Só pensando assim, compreenderás que o mundo será aquele cenário onde podes dar cor à vida de todos aqueles que mais gostas.

- Pois então, Sr. Zé, confesso que acabou de colorir uma importante parte da minha vida. A partir de hoje, passarei a ver o mundo que me rodeia com o outro olhar. Um olhar que não se resuma à sua mais banal essência e possa ser também uma acção em que se veja muito mais do que aquilo que se olha, que se possa desfrutar com maior intensidade das coisas simples da vida. Para mim, aquele grupo de pessoas que jogavam às cartas não foram pura e simplesmente mais uma fatia das imagens que a nossa rotina nos dá. A minha permanência neste jardim, abdicando das distracções próprias da irreverência da minha vida, proporcionou-me momentos de uma inigualável riqueza. Descobri que por trás de cada rosto existe uma história que não é nem mais nem menos bonita do que a dos outros. Cada uma delas comporta a genuinidade das vivências de cada um e isso é que é importante. É importante saber que o conjunto das nossas acções comporta uma elevadíssima riqueza, cuja essência é quase sempre subestimada. Nada mais me passará despercebido na minha vida. Procurarei absorver todas as fontes enérgicas bem próprias daqueles que tem a felicidade de ainda estar por cá. É grande o privilégio em partilhar promiscuamente o nascer do sol e o erguer da lua, sempre com a feliz conclusão de que valeu a pena mais aquele dia. Valeu a pena aquele sorriso, valeu a pena aquela lágrima que recolhi e que constituiu uma causa legítima, propiciando um ensinamento único.

- É bom saber que não foi vã a tua presença neste meu cantinho na cidade. Quero inclusive pedir-te desculpas pela frieza com que acolhi a tua abordagem. A vida tornou-me assim, pelo que já sofri e vivi em todos estes anos. Apesar disso, a composição do mundo pela mudança dita pelo nosso Camões determina que ainda hoje, volvidos tantos anos, fui capaz de reviver a vida. Ao esclarecê-la contigo redefinia-a, pois pude reencontrar a intensidade de cada momento que passei em todos estes anos.

- Realmente as coisas surgem do nada e passam a ser tudo!

- Queres então que a história fique por aqui?

- Mesmo receando desesperadamente com cada seguinte palavra que irá pronunciar, quero conhecê-la até ao fim para compreender o seu princípio.

- Não deverás recear nunca as palavras. Estas alimentam as nossas vivências e são a fonte que garante a nossa existência. A palavra detém poderes titânicos capazes de desencadear ódios e alianças.

- Então de que cor são as palavras que se seguem?

- Vou pronunciá-las e tu vais colori-las, de acordo com a tua imaginação.

- Estou preparado, Sr. Zé!

- Estiveste sempre, amigo!

- Então e onde ia eu?

- No poço, Sr. Zé. A terra que escavou com o pobre do pai da Mariana.

- Foi consternador o que vimos. No fundo do poço estava um envelope branco, humedecido com a água que nascia na vizinha fonte. O pai de Mariana sugeriu que destruíssemos esse pedacinho branco, advogando o facto deste significar algo terrivelmente mau. O meu coração morria vezes sem conta e não conseguia discernir se deveria ou não destruir aquele pequeno envelope. Escondi-o na suada camisa e acompanhei o Joaquim até casa onde o belo jardim tinha dado lugar a um cenário triste e descaracterizado. Até as flores que há noite ganham a vida que Sophia tão superiormente gerou deixaram de ser quem eram e lamentavam a ausência da sua mais bela companhia. Deixaram de bailar na imaginação e brotavam o pranto dos verdes olhos que já não as viam. Era já bem difícil alcançar a porta que Paula segurava com as costas, aguardando com a própria ternura de mãe que a sua vida lhe proporcionasse o seu segundo maior desejo. Tal como esperara pelo primeiro choro Mariana, desejava agora o regresso como se este constituísse um renascimento para a sua vida. Nessa noite foi difícil suster a revolta dos corações. Estes tinham acabado de resistir ao maior dos medos, desde o primeiro minuto da ausência da Mariana. Recearam a morte naquela preta terra que preenchia o poço da fonte.

- Eu também a receei, Sr. Zé!

- Toda a gente a receou, Hugo! Estava decidido a procurá-la no céu nesse instante. Pensava no que estaria a fazer ali, sem a divina presença do meu amor. Nessa noite, o cansaço quase me privara de ver finalmente o conteúdo daquele envelope humedecido. Lá dentro estava uma carta.

Porto, 31 de Julho de 1954

Meu querido Pedro,

Já não aguento mais a tua ausência. Antes sabia que estavas por perto, que te podia ver.

Sabia também que tu me vinhas ver aqui ao jardim e respeitosamente nunca quiseste interromper a minha conversa.

Penso agora que tu até já sabias aquilo que conversava e acreditavas que depois eu estaria de regresso aos teus braços.

Que se passa amor? Não me escreves há dois meses e receio o pior. Vou partir para junto do teu coração e aí estarei melhor. Quando chegar junto de ti direi aos meus pais e eles compreender-me-ão.

Até breve, meu Amor Lindo!

- Sr. Zé, não quero acreditar naquilo que estou a ouvir!

- É verdade, Hugo. Ela foi correr a meu encontro. Teríamos cruzado um pelo outro pela neblina do mar. Ela partia com a esperança de me encontrar e eu regressava com a certeza de não a perder.

- Impressionante este mundo desencontrado.

- Eu diria desengonçado. Ninguém se entende na ordem do caos em que o individualismo camuflado numa patética hipocrisia é o prato do dia de um iluminado que se diz pugnar por todos para proveito próprio.

- Vá não se zangue, Sr. Zé.

- Foi só um desabafo, meu amigo Hugo. Depois de conhecer aquelas palavras ainda agravei o meu estado desesperado. Nem imaginas a frustração de um homem que ama, que sabe que é amado e não vive esse amor por causa desse tal mundo desencontrado. Não falei dessa carta aos pais do meu amor. Acalentava-lhes a esperança de que agora tinha a certeza que ela estava viva e eles acreditavam em mim. No entanto, Paula pedia-me para levar o quadro ao jardim. Lá voltava a ler a esperança das palavras que eram verdes para Mariana e negras para mim.

- Tal como dizia, cada um de nós pinta as palavras consoante a pigmentação da sua vida.

- Entretanto, aquela senhora voltava ao jardim. Falava para mim como se já me conhecesse há bastante tempo.

- Então, ainda não encontrou o futuro dono desse quadro?

- Presumo que não o encontrarei, mas vou cumprir a minha promessa até ao fim.

- Vi-o ler uma carta. Ficou muito triste.

- Fiquei mais do que triste, senhora! Estou absolutamente desolado com a frustração de não poder ter respondido àquelas palavras carregadas de esperança.

- Fala-me da menina do retrato? Da Mariana, não é?

- Sim, da minha vida. Eu perdi a minha vida.

- Vá, não desanime. Vai ver que irá recuperar todos os dias que perdeu e viverá momentos de grande alegria. O meu amor também não foi fácil no início e agora vivo um sonho permanente.

- Como poderei esperar algo de uma vida que só me tem trazido dissabores.

- Enquanto há vida há esperança e não deve descurá-la.

- Bem sei, mas que posso fazer se acabo de descobrir que, por minha causa, uma jovem e inteligente mulher ter-se-á perdido num sonho inacabado.

- Sabemos quando começa, mas nunca temos a certeza quando termina a nossa missão nesta vida. Devemos isso sim fruir das várias possibilidades para voltarmos a ser quem realmente gostaríamos de ser. E não duvide que, esteja onde estiver a sua Mariana, ela gostaria de o ver mais vigoroso, perdendo a melancolia de um olhar atónito que não quaisquer reacções.

- Como gostaria eu de reagir! Mas não encontro a vida que tanto amo! Receio pelo seu desinteresse em relação a mim.

- Você está a ser bastante injusto. Como pode o Pedro afirmar que o seu amor já nada nutre por si?

- São os pressentimentos de um coração que se viu perdidamente envolvido por um outro que idolatrava, cuja fatalidade de um destino anunciou o fim de tudo.

- Quem disse que tudo acabou? Olhe à sua volta, Pedro. Já viu a imensidão que o rodeia. Nunca terá pensado que por entre tantas folhas, por trás de tantas portas não poderá estar quem tanto procura?

- Não tenho eu feito outra coisa, desde o dia em que descobri a sua ausência.

- O segredo pode estar na forma como procura esse amor. Por que razão anuncia a sua responsabilidade neste desaparecimento. Você fez tudo o que estava ao seu alcance. Aliás, Mariana pode ter razões muito fortes para não regressar.

- Mas fui eu que despoletei todo este desespero. Não devia ter partido. Se esperasse, teria agora os seus olhos perto dos meus e até poderíamos estar aqui a conversar consigo!

- Olhe, Pedro! Estarei sempre por perto. Acredite que tenho pensado muito em si e nos pais da Mariana. Devo até dizer que os conheço e que já me ajudaram bastante. Chamo-me Cristina e já vivi uma história bem parecida com a vossa. Fui dada como uma louca que todos ia à Fonte dos Baralhos, levando na esperança que seria nesse dia que ele iria voltar de Trás-os-Montes. Lamentava-me igualmente porque, dando ouvidos aos outros renegava para segundo plano a importância daquilo que pensava. Ele também me queria muito, tal como o Pedro deseja o seu amor.

- Então diga-me o que ele fez, senhora!

- Nada, ele não fez nada. Limitou-se a acreditar na vida, tal como eu acreditei que um dia iríamos ser um só ser.

- E esperou muito por esse dia. Acredito que se assim sucedesse ele ainda estaria à minha espera na Fonte dos Baralhos.

- Que local estranho esse. Descobri a carta num poço bem lá perto.

- Eu conheço bem esse poço. Significa muito para mim. Não deveria deixar de lá ir…

- Sabe, Sr. Zé? Vou confessar-lhe uma coisa. Eu também estou apaixonado por uma Cristina.

- Muito bem, Hugo! Então e como é essa Cristina.

- Para mim, é a rapariga mais bonita do Liceu.

- Então deve ter muitos pretendentes.

- Pois esse é que é o grande problema. Por ser a mais bonita eu não tenho quaisquer hipóteses.

- Não digas isso. Se estivesse no teu lugar convidava-a a ver um jogo de sueca. Provavelmente iria ter muito que ver, tal como tu no dia de hoje.

- Sem dúvida. Viajaria comigo no mundo das emoções e compreenderia a razão superior das coisas simples, ignorando os caprichos da futilidade.

- Então diz-lhe para vir amanhã! Mas não telefones. Escreve-lhe uma carta para ela pintar as palavras à sua maneira. Descobrirás que ela não hesitará em procurar saber quem é o rapaz das palavras coloridas e cá estará à tua espera para satisfazer a sua curiosidade. Eu também te dou uma ajudinha, tal como tu me ajudaste!

- Obrigado, Sr. Zé. Mal chegue a casa pintarei a carta da minha vida. Conte-me lá o desfecho da sua história.

- Fiquei melindrado com aquilo que Cristina me dissera. Questionava-me sobre o intuito daquele conselho, mas mesmo assim voltei à Fonte dos Baralhos.

- Não me diga que voltou a ver o pintassilgo?

- Não, Hugo. Quando lá cheguei encontrei novamente a Sr. Cristina. Parecia-me bem mais nervosa do que das outras vezes. Tinha as mãos a tremer e dirige-me a ela para saber qual seria a razão daquela coincidência.

- Boa tarde, Pedro! Vim matar saudades da minha juventude. Este é o local mais belo que eu conheço.

- Não é aquilo que as pessoas dizem.

- As pessoas iludem-se com ideias vagas e imprecisas. Eu não tenho superstições. Aliás, deixei de as ter quando concluí que a razão do meu sofrer tinha como causa directa a fértil imaginação de um povo que julgava os outros por amarem na mais bela acepção do termo. O recurso a estas especulações sobre a sanidade mental dos outros relacionava-se com a incompreensão de tamanha forma de amar. Foi naquele poço além que encontrei o pagante da atrocidade do povo. Sentia-o por perto e lá estava ele esperando por mim.

- Se soubesse que a Mariana vinha, também desceria nesse poço e dormiria profundamente até à hora da sua chegada.

- E pensava eu que já ninguém amava como eu amei! Mas se acredita nisso, por que não o faz?

- Então e você foi para o poço? – perguntou Hugo cada vez mais curioso.

- Fui e descobri o local ideal para me isolar dos olhares reprovadores da minha frágil e endémica aparência.

- Já o consideravam igualmente um louco!

- Exactamente, meu bom amigo. Tinha decidido levar o belo quadro de Mariana para poder conversar com ela. O que era mais incrível residia no facto de Mariana me responder. Eu ouvia-a em todo lado e por toda a parte. Mesmo os pais de Mariana, esboçando já algumas reacções positivas reprovavam o meu acto e diziam-me que não era necessária a minha presença no poço. Mas eu passei a viver lá no poço e gostava de lá estar. Pelo menos sentia que naquele poço podia criar um meu mundo. Eu cri que, se lá permanecesse, os olhos que espelham a minha alma veriam tudo aquilo que eu mais desejava neste mundo. As crianças mais rebeldes atiravam-me pedras, mas eu não reagia. Estava decidido a passar o resto dos meus dias junto à fonte. No final do dia, deitava as cartas e a dama de copas lá aparecia, alimentando assim as minhas esperanças. Quem passou a visitar-me com maior frequência foi Cristina que me contava histórias lindíssimas. Pensava que as tinha inventado para me incentivar, mas de uma coisa ela teve sempre a certeza. Dizia-me com persistência que um dia Mariana voltaria, cantando como um pintassilgo. Eu aguardava por esse dia. Numa dessas visitas, deu-se um reencontro incrivelmente emocionante. Joaquim e Paula viam a velha amiga Cristina.

- Mas que surpresa! Olá Joaquim e Paula!

- Cristina, minha velha amiga. Como estás elegante! – disse Paula admirada.

- Sou adelgaçada pela felicidade. E tu?

- Sou amordaçada pela tristeza. Não sei onde possa estar a minha filha e a vida não faz sentido nenhum.

- Nunca desistam de a procurar. Ela poderá ter as suas razões para não querer aparecer. Já pensaram nisso?

- Não pensamos nós noutra coisa – interrompeu desesperado o Joaquim.

- Devem sempre pensar bem antes de agir. As boas intenções não justificam os erros e é claro que vocês não merecem nada disso, principalmente por tudo aquilo que já passaram na vida.

- Tu também sofreste, não foi? Em meu nome e também do de Paula peço-te imensa desculpa por andarmos a enganar-te a ti e ao Hugo!

- E o que aconteceu ao Hugo?

- Vivemos juntinhos numa casinha pequena e ele continua a ser o mesmo sonhador de sempre que nunca chega a horas a casa.

- Fico muito contente por vocês. Onde está ele agora?

- Foi fazer uma acção de voluntariado à Índia.

- Bem, aquele rapaz não pára de nos surpreender. Gostava de o ver. Ele foi das últimas pessoas com quem Mariana falou antes de ela desaparecer. Podia ter algo a dizer…

- Eu queria dar-lhe aquele quadro que o pobre do Pedro ali tem.

- Fico orgulhosa por saber que reconhecem a extrema bondade do meu D. Quixote.

- Então e você continuou naquele poço?

- Não tinha base para sair, nem queria mais conhecer o mundo. O meu novo mundo passava por ali. Dormia durante o dia e à noite declamava poesia.

Meu Amor,

Perdi o meu rumo por completo

Entre dias vazios

Dei comigo num sofrimento incorrecto

Risquei mares e rios

Onde por ti gritei na angústia do incerto

Mariana, o nome do amor

A musa do devaneio

Regressa, pára a dor!

Imagina todo este receio.

Anda, volta

Na força da revolta e vem

Acalmar a fúria que o vento solta.

- Rapidamente, o poço da Fonte dos Baralhos passou a ser um local de peregrinação de curiosos difamadores. Tinham já criado um passeio turístico para se ver o “homem das cavernas” que “dizia poesias e descrevia os seus sonhos, enquanto dormia.”

- Impressionante, Sr. Zé! Mas que história alucinante!

- Bem, amigo Hugo! São quase sete e meia e a tua mãe já deve ter ligado para todos os hospitais.

- Não se preocupe. Quando lhe contar a sua história, que também é minha, ela esquecerá tudo num ápice!

- No meio da confusão que se gerava na Fonte dos Baralhos, ouvia Cristina dizer-me para não desistir, pedia-me para resistir às agressões de ordem moral de que era vítima. Era agora a razão da chacota dos meus velhos amigos que contavam piadas sobre a minha condição. Simultaneamente, recuperara a postura platónica de amar e confortava-me a sua recordação, na qual elevava Mariana muito para além do Homem e bem acima dos deuses. Era para mim o ser mais divino. Foi com essa convicção, com a força de tantos insultos que saí do poço, levando o quadro de Mariana na mão direita. Todos me observavam com comiseração, mas eu tinha agora o sorriso. Era o sorriso de Mariana que fortificava a minha condição e devolvia a minha alegria de viver.

- Então e porque mudou tanto assim tão repentinamente?

- Ainda hoje não sei explicar, mas na verdade voltei ao trabalho e abri os braços ao mundo! Este também me acolheu e, seis meses depois, estava totalmente recuperado para amar a minha Mariana, mesmo desconhecendo o seu paradeiro. O jardim da sua casa estava já florido e as flores vivas de Sophia já organizavam os seus bailes. Joaquim e Paula uniram-se e derrotaram o desespero, com a força do amor e da harmonia. Eram felizes dentro do possível. Haviam recuperado os velhos amigos Hugo e Cristina e jogavam às cartas. No final de um dos jogos, Cristina ergueu-se e desabafou bem alto aquilo que Paula e Joaquim tanto queriam ouvir. Vieram a correr chamar-me e contaram-me que sabiam que Mariana estava bem. Ela escrevera-me uma carta e pediu à Cristina para entregá-la precisamente naquela data. Cristina confessara, no entretanto, que essa foi a promessa que mais lhe custou cumprir. Hugo e Cristina já sabiam há muito tempo que Mariana se encontrava na Alemanha oferecendo toda a sua força e bondade para reconstruir aquele pais tão barbaramente arrasado, durante a II Grande Guerra. Nesse dia, delirei com as palavras manuscritas pelo meu amor.

Bona, 10 de Janeiro de 1955

Meu querido Pedro,

Antes de mais, peço-te que compreendas as razões que me levaram a tão demorada ausência.

Saí daí para te procurar, para te encontrar e para ser feliz junto de ti, que és o meu amor.

No entretanto, muitas coisas aconteceram na minha vida. Com o desespero de te querer e não te ver, decidi entregar-me de alma e coração às questões humanitárias e tenho vindo a auxiliar este grandioso país e o seu povo a reconstruir cada canto.

Quero que saibas que estou bem e que aqui estou também a prosseguir os meus estudos.

Peço-te também que ajudes os meus pais a ultrapassar este momento difícil que deverão estar a atravessar. Um dia eles irão compreender as minhas razões.

Um beijo pleno de amor

Mariana

- Aquelas palavras de Mariana apagaram num segundo todos os meses de dor e de revolta por não a ter por perto. Procurei explicar aos seus pais as eventuais razões da prolongada ausência da sua filha. Estes também não sabiam se haviam de se rir ou de chorar a tristeza do sofrimento que tanto os apoquentou.

- E a peça está-se a acabar, Sr. Zé!

- Sim, Hugo! Estamos justamente no momento em que a ânsia da plateia se relacionava com a vontade de querer o meu amor de volta. Procurava todos os dias Cristina e pedia-lhe para que ela me desse novas do meu amor. Andava louco com a extrema alegria de saber que Mariana estava perto, bem perto e que desta feita não a iria perder. Contudo, a carta que se seguiu não augurava nada de bom.

Londres, 12 de Fevereiro de 1955

Querido Pedro,

A vida corre-me lindamente. As notas dos exames foram óptimas e aqui vivem-se tempos de grande alegria e prosperidade. Há música por todo o lado e eu não tenho perdido uma única oportunidade para ir dançar.

Um beijo saudoso para ti e para os meus pais.

- Sentiu-a mais distante, não foi?

- Sim, Mariana já não era a mesma. A brevidade das palavras era azul. Não encontrava uma outra cor para aquelas frases. Entristecera-me o afastamento, mas alegrara-me o facto de saber que ela estava feliz. Isso já me fazia bem, independentemente das fugazes linhas de uma carta. Continuava a amá-la rigorosamente da mesma forma e com e mesma intensidade. Os pais de Mariana estavam bem mais felizes e Joaquim voltara a escrever, enquanto que Paula pintava quadros subordinados à temática da saudade. Faziam questão que fosse lá a casa, como se já fizesse parte da família. Hugo e Cristina haviam não só recuperado a felicidade em tempos idos, como também dois velhos amigos. Entretanto pedira a direcção da residência de Mariana, solicitando a autorização dos pais para que pudesse escrever-lhe. E assim fiz.

Porto, 27 de Fevereiro de 1955

Querida Mariana,

Receio que esta seja a derradeira carta, assim como senti que a última que me escreveste anunciasse uma despedida.

Senti-te muito mais distante da vida que te liga a mim. A alegria que demonstras é para quem te ama um motivo de consolo.

Vivo para te ver feliz e sobrevivo com a infelicidade de não te ter por perto. Passei por momentos de indescritível frustração. Confesso-te agora que, no fundo, as cartas que lançavas todos os dias tinham a sua razão.

A última chegou tarde demais. As nossas vidas desencontraram-se de forma permanente e a irreversibilidade do nosso destino falo mais alto.

No entanto, meu amor, procurar-te-ei com a mesma perseverança no conforto dos meus sonhos.

Peço-te que ao menos me venhas visitar nessas divagações para alimentar a minha sede de te querer. Desculpa a minha acutilância ao formular-te este pedido, mas pelo menos deixa-me viver contigo na magia dos sonhos.

Vou continuar a respirar para saber de ti, para lutar todos os dias, com todas as minhas forças, contra o desespero desta triste sina.

Sei que o Hugo abriu os nossos horizontes. Ele provou-nos que é fácil ser feliz e fez-nos ver que este sentimento raro e belo ultrapassa todas as barreiras possíveis e imaginárias.

Não devia ter partido naquele dia. Foi aí que errei, Mariana. Devia ter ficado à espera naquele poço até chegar a hora de tu me dares a mão e içares a nossa felicidade.

Viverei, no entanto, a solidão de nunca estar só. Foi assim que o baralho da nossa vida pintou o destino e nada pudemos fazer para que este mudasse, por muitas afrontas que lhe tivéssemos dado.

Peço-te que não chores e que pintes estas palavras da cor da tua alegria. Saberás onde estarei, se um dia quiseres voltar. Os meus olhos encontrarão os teus na busca de um novo caminho.

Nesse caminho árduo da vida, irei permanecer sereno, dignificando com elevação a magistral forma de te amar.

Até sempre, Mariana!

Pedro

- É incrível como você não esqueceu uma única palavra da sua história.

- Meu bom amigo Hugo. Um dia, quando amares alguém de verdade irás recordar os mais ínfimos pormenores da tua vida. Vais construir o teu mundo em torno da sua vida. Vais apreciar cada momento como se fosse único e o tempo fluirá fugazmente, sem que dês conta que este passa por ti a um ritmo intenso. Vais sentir o seu coração nas melodias e cheirar o seu perfume nos aromas da vida. Os teus sentidos convergirão para a sua existência e a tua incumbência será a de acicatar o sorriso sublime da pessoa que a teu lado te dá o céu e, na sua ausência física, garantirás a tua presença junto do seu coração.

- Sr. Zé, quero agradecer-lhe as horas mais marcantes de toda a minha vida e gostava de lhe fazer um pedido.

- Diz, rapaz! - Deixe-me pintar o que falta deste seu terceiro acto e imaginar o epílogo da peça da sua vida.

- Sem perceberes e sem suspeitares acabaste de o fazer, meu amigo! E agora vai, não percas o vinte e nove. Deve estar aí na berra. Costuma chegar às sete e meia.

- Não, Sr. Hugo. Hoje vou a pé para olhar e usufruir de tudo aquilo que me envolve e vou pensar na carta que escreverei à minha Cristina.

- Ela vai aparecer amanhã, mas quero-te aqui mais cedo para jogares umas partidinhas de sueca. Pois agora já sabes contá-las.

- Assim o farei, Sr. Zé!

- Ah! Não te esqueças dos tremoços e dá cá um abraço meu bom amigo!

Após um longo e sentido abraço, Hugo foi capaz de percorrer retrospectivamente todas aquelas horas inesquecíveis que aquele aparente encontro fortuito proporcionou. Hugo pensava nas diferentes cores a aplicar no seu final e desejava acima de tudo que as suas fossem a rigorosa pigmentação da vida daquele novo velho amigo. Considerou-o um poeta sonhador que ama a vida, pintando o sol e a lua da mesma cor, pois o amor não dorme.

- Então até amanhã, meu bom amigo! Desejo-te sorte para a tua obra.

- Obrigado, Sr. Zé! Vou seguir e assim mudar o mundo.

- Meu Deus, Hugo! És capaz de me ver aqui o telemóvel? É que não percebo nada disto e já tenho dezenas de chamadas não atendidas.

- As chamadas são de sua casa, Sr. Zé!

- Ah! Então vou ligar isto, nem imaginas como eu preferia escrever. Ao telefone nem dás tempo para pintar a vida!

Hugo ficara fascinado com o que ouviu de seguida: “Estou! Estás a ouvir-me? Está bem! Já sei que não devo falar alto. Parece que estou a gritar do fundo de um poço, não é. Desculpa, meu amor. Hoje o jogo acabou um pouquinho mais tarde, mas já estou a sair para aí e tenho muito para te contar, Mariana. Um beijo pleno de amor! Até já!”.

Os olhos de Hugo brilharam quando a pequena conversa telefónica terminou. O Sr. Zé sorriu e disse:

- Como vês, meu amigo! Para além de bom ouvinte, és um grande pintor de palavras. Até amanhã, rapaz! Olha, traz também um baralho novo para ganharmos para os tremoços!

- Assim o farei, Sr. Zé!

Feliz com a vida, Hugo regressava a casa e não escondia o seu sorriso a ninguém. A feliz sensação do dever cumprido alegrava a sua alma. Olhava à sua volta e pensava na cor das vidas das pessoas que observava. Queria agora pintar o mundo à sua imagem, com a força de uma expectativa de quem tem ainda muitas cartas para jogar no percurso da sua existência.

Ao chegar a casa, Hugo encontrou um bilhete deixado na porta daquele frigorífico que brilhava como nunca.

“ Meu querido filho,

Hoje a mãe e o pai vão chegar mais tarde, porque fomos ao dentista e já sabes como é. Se quiseres, aquece a comida que está no microondas. Um beijo do tamanho do mundo, para a luz da minha vida!”

Quando leu o bilhete, Hugo não hesitou em pegar no telefone e ligou logo à sua mãe: “ Olá mãe. Só cheguei agora a casa, mas não demorem muito. O meu coração espera por vós.”